Com uma mão apoiada na bengala e outra no braço de Lídia, Odete Peres percorre devagarinho os 500 metros que separam a sua casa da farmácia. Sempre atenta aos buracos da calçada que a possam deitar ao chão, pelo caminho recorda os bons tempos do Parque Mayer e da Praça da Alegria, onde todos se conheciam e viviam como uma família.
O braço que a segura é da voluntária de 31 anos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa que conheceu há um ano e que tem sido uma verdadeira lufada de ar fresco na sua vida. «Apresentaram-nos e gostámos logo uma da outra», afirma, ainda por meias palavras e sem querer adiantar muito. É com Lídia, que a visita uma ou duas vezes por semana, que vai ao supermercado, tratar de assuntos da casa ou simplesmente passear na avenida. «Ontem apanhámos o Uber [sistema de transportes accionado pelo telemóvel] para ir à EDP. Foi uma experiência nova», conta a voluntária, sentada na sala de estar desta antiga casa da Rua da Glória, no coração da cidade.
As visitas domiciliárias também servem para conversar. À primeira impressão, Odete parece não ser de grandes conversas, mas ao fim de uma hora já passou em revista os momentos mais marcantes da sua vida: o trabalho em casa das «famílias ricas que na altura tinham costureira e governanta», a doença e a ida do marido para África, o apoio incondicional que recebeu de vizinhos em horas difíceis. Lídia aprecia isso, sabe ouvir. «Também gosto de História e a D. Odete conta muitas coisas. Ainda há dias adorei ouvi-la falar do 25 de Abril», afirma a jovem, oriunda de Guimarães, terra onde as redes familiares e de vizinhança «ainda funcionam». Veio para a capital fazer o curso de cinema e já esteve a trabalhar, mas agora tem mais tempo livre para Odete porque ficou desempregada.
Aos 77 anos, Odete vive sozinha há dez e diz que há três deixou de conseguir fazer as coisas sozinha, mas não abre mão de passar os dias que lhe restam onde se sente melhor: na sua casa. Ainda sai todos os dias para dar uma volta pelo bairro e almoçar no restaurante. Conta também com a ajuda da Junta de Freguesia, que tem sempre alguém para a acompanhar ao médico ou para ir a sua casa fazer uma tarefa mais exigente. A família existe: uma filha, dois netos e uma irmã, mas o contacto não é regular nem desejado. «Se me sinto sozinha? Sim, às vezes. Mas a Lídia também tem a vida dela», confessa, dirigindo um olhar meigo à jovem. Como Lídia, há 24 voluntários no programa Mais Voluntariado Menos Solidão, promovido pela Santa Casa e que tenta combater a solidão dos mais velhos.
Quando precisa de alguma ajuda, ou simplesmente deseja ter alguém com quem conversar, Odete Peres pode ainda ligar para a linha de assistência da Santa Casa, um serviço que funciona 24 horas por dia, 365 dias por ano, e que é accionado pela pulseira que tem no pulso. A idosa confessa que liga várias vezes, e um dia os técnicos da linha até accionaram uma ambulância para lhe prestar socorro. «Mas muitas vezes é só para conversar. Ou eu ligo para eles ou eles ligam para mim». O serviço tem cada vez mais adesão: em 2014 registou 22.314 chamadas dos 638 utentes com o carephone, ou seja mais 24,3% do que em 2013.
Solidão, fome e medo
Segundo o Censos de 2011, elaborado pelo Instituto Nacional de Estatística, havia naquele ano 132 mil pessoas com mais de 65 anos a viver em Lisboa. Num levantamento posterior feito em 2012 pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, apurou-se que um terço vivia sozinho e os restantes 66% moravam com outro idoso. Em todas as freguesias da cidade, muitas dezenas de voluntários fizeram 23.909 inquéritos, abrangendo 16% do universo total de velhos da cidade.
Dos 22.679 questionários validados foi possível tirar outras conclusões: 60% tinham mais de 75 anos, havia muito mais mulheres do que homens, e 86% viviam em andares, não obstante terem problemas de mobilidade. Uma larga maioria (80%) tinham filhos, embora muitos não usufruíssem da sua companhia regular.
Além dos dados quantitativos, o Intergerações revelou situações alarmantes: muitos passavam fome, precisavam de ajuda directa nas necessidades mais básicas como comer, limpar a casa ou tomar a medicação. Foram encontrados idosos que não saíam de casa há mais de sete anos, com depressões e graves problemas de mobilidade. Muitos afirmaram ainda ser vítimas de maus tratos físicos e psicológicos por parte dos familiares. «Situações que, por ocorrerem dentro de casa, estão a passar despercebidas ao conjunto dos interventores sociais», pode ler-se no relatório final do Programa Intergerações.
Os voluntários que durante semanas andaram em busca dos mais desprotegidos da cidade depararam-se com muitas portas fechadas e até sentimentos hostis. Na origem desta desconfiança estavam a vergonha mas também o medo de serem retirados de casa e levados para um lar.
A informação recolhida permitiu à Santa Casa traçar estratégias dirigidas a esta população específica, explica Rita Valadas, administradora da instituição com o pelouro da Acção Social. Em primeiro lugar, resolver os 568 casos urgentes detectados. Há muitas respostas sociais para os idosos em Lisboa, grande parte pertencem à Misericórdia, que substitui a Segurança Social na cidade, acompanhando quase 30 mil velhos. Há 26 centros de dia, 14 serviços de apoio domiciliário, 10 lares, sete residências assistidas, uma residência temporária e um projecto de teleassistência. A Santa Casa ajuda ainda algumas famílias a suportarem os custos do seu lar. Os subsídios atribuídos em 2014 ultrapassaram os 10 milhões de euros, ou seja, 57% do total do montante gasto pela Santa Casa em subsídios. Pela cidade, há ainda quatro equipas que acompanham só os mais velhos. Aqui o trabalho também tem aumentado e em 2014 estas equipas atenderam 1446 pessoas, das quais 1255 correspondiam a situações novas.
Centros de dia ainda vistos como lugares para velhos e pobres
Rita Valadas considera que o «modelo chapa cinco» dos centros de dia está ultrapassado. «A sociedade não é assim, não encaixota as pessoas. Por isso, não podemos usar o modelo que foi usado para os nossos avós nem planear outro para o tempo dos nossos filhos», afirma, preferindo apostar em respostas heterogéneas. O envelhecimento das últimas décadas tem permitido às pessoas viverem mais tempo, lembra, «mas se não houver ocupação e saúde, os anos que se acrescentam à vida tornam-se num inferno». Idosos com 70 e até 80 anos estão hoje perfeitamente autónomos e, assegura, «não querem ir para um centro de dia porque acham que isso é para os velhos e para os pobres».
No final de 2014, a Santa Casa criou um grupo de trabalho para estudar um modelo alternativo para responder melhor às expectativas dos potenciais utilizadores dos centros de dia. Rita Valadas é taxativa: «São para extinguir quando vagarem». A solução é criar actividades diversificadas em espaços concretos e fazer os utentes circularem, escolhendo aquilo que querem fazer sem ficarem limitados ao seu centro de dia. «Espaços que não sejam mono-actividade e que não sejam só para velhos mas também para pessoas que ficaram desocupadas muito cedo e ainda estão à espera de ser velhas», explica a administradora da Misericórdia.
Actividades por inscrição
O Espaço Santa Casa, no Campo de Santa Clara, é já uma experiência do novo modelo. Aqui há uma Academia que oferece aulas de costura criativa, inglês, espanhol, teatro, stretch, viola, danças latinas e educação pela arte. O espaço está aberto aos utentes dos vários centros e também à comunidade, sejam novos ou velhos. Quem quiser participar basta inscrever-se nas actividades divulgadas pela Junta de Freguesia. Actualmente há 578 pessoas a frequentar o espaço, 80% idosas. A costura criativa e as danças latinas são as actividades com mais adesão. Este edifício reabilitado há poucos meses é também usado para exposições e eventos.
Quinta-feira à tarde é dia de teatro e as carrinhas param à porta do Espaço Santa Casa para deixar idosos de três centros de convívio. Em palco estão 12 actores, dez idosos e dois sub-65 (monitores dos centros), a encenar a peça Flauta Mágica, adaptada numa linguagem mais acessível pela professora Olga Sotto.
«Vamos habituar-nos ao público», diz a encenadora, aproveitando a presença de espectadores para treinar os actores. Uma gravação feita pelos próprios idosos ajuda a acompanhar os textos e dá as deixas a cada um.
Entram em cena as damas de honor da Rainha do Norte, quatro senhoras com pouca ou nenhuma experiência na representação mas que dão alma à personagem. Sarasto, o mau da fita, é interpretado por Afonso, 74 anos, que recebe um incentivo da professora: «Olhe que o seu filho está a ver. É o seu orgulho!», diz Olga Sotto, pois sabe que o filho de Afonso também é actor.
Maria José Aleixo é Pamina, a princesa da peça, e vem do Centro de Convívio de São Boaventura. Começou a frequentá-lo com mais frequência quando o marido morreu pois sentia-se triste e precisava de distracção. Depois acabou por alinhar numa passagem de modelos da terceira idade e em teatros amadores. Aqui na Academia participou ainda na elaboração dos figurinos, feitos nas aulas de pintura, sob orientação de Olga.
Já Fernando Lopes, de 78 anos, protagoniza Papagueno, o caçador de pássaros. Mas não se sente à vontade em palco pois esse não é o seu papel. Veio apenas substituir alguém que não veio. «Se não estivesse aqui onde estaria?», perguntamos-lhe. «Provavelmente em casa a dormir».
rita.carvalho@sol.pt