Demência: o apagão gradual de uma vida

Da última visita que fez à mãe, Manuela Cerejeiro levou duas alegrias: “Disse-me ‘Olá, filha’. Ou seja, falou e reconheceu-me. Fiquei tão contente”. Sentada na poltrona da sala de estar da Casa do Alecrim, instituição para doentes com Alzheimer, Cândida vai dormitando e abrindo os olhos. Mas não fala, só sorri. Ao lado, outras senhoras…

“Quando aqui entrou, há um ano, veio pelo próprio pé, depois começou a andar devagarinho. Mas falava. Agora não come, não anda, não fala, está completamente dependente”, conta a filha, consciente de que a degradação das capacidades da mãe de 86 anos é um processo rápido e irreversível. Cândida já não recorda os nomes dos netos cujas fotografias estão expostas na parede do quarto, pois fazem parte de uma memória que já se apagou.

A “bomba” do diagnóstico de Alzheimer, doença neurodegenerativa que provoca alterações no comportamento, na personalidade e na capacidade funcional, caiu há seis anos, logo após a morte do marido, doente de quem Cândida cuidou até ao fim. “Fazia tudo sozinha, mas começou a dizer que se esquecia do código do multibanco e depois surgiram outros esquecimentos e confusões mais graves: vestia a roupa ao contrário, ia almoçar fora com ela e apercebia-me de que ela já tinha almoçado e não se lembrava, deixava o prato cheio dentro do microondas”, conta Manuela Cerejeira, já liberta da “angústia e do susto” dos primeiros tempos da doença. A partir daí, a família foi “gerindo e encontrando soluções certas para cada fase”: primeiro contratou uma pessoa para estar em casa a cuidar de Cândida, depois colocou-a num centro de dia, até ao ponto em que percebeu que “se não arranjasse uma solução cá fora, ela ia ficar acamada em casa”.

Lares especializados são raros e famílias desesperam à espera

A solução foi a Casa do Alecrim, da Alzheimer Portugal, associação que presta apoio a familiares de doentes com esta demência. Aqui a mãe está feliz, garante Manuela. 

Em Portugal estima-se que existam mais de 182 mil pessoas dementes, 90 mil das quais com Alzheimer, a doença responsável por 50% a 70% das demências. Como a sua propensão sobe exponencialmente com a idade, estima-se que o número de doentes aumente nas próximas décadas, tendo em conta o envelhecimento galopante da população portuguesa. A maioria está em casa, entregue aos seus familiares e com apoio de serviços domiciliários, ou em lares residenciais, muito poucos especializados no acompanhamento a estes doentes.

“Casas como esta são uma gota no oceano”, diz Fernanda Carrapatoso, directora técnica da Casa do Alecrim, onde o lar acolhe 36 doentes, o centro de dia 15 e o serviço de apoio domiciliário mais 50. Mas há 400 pessoas em lista de espera, acrescenta a responsável, confessando que lida diariamente com familiares desesperados à procura de uma instituição especializada para o seu doente.

Aqui desenvolvem-se actividades à medida de cada um, das suas vivências e gostos e, principalmente, do estádio da doença em que se encontra, pois enquanto mantém uma função, o doente deve usá-la. Se consegue comer com o garfo e a faca, não come com a colher, embora o tempo fará com que perca completamente esta capacidade. O objectivo é estimular o cérebro, para que as várias janelas que o compõem, e que se vão fechar gradualmente, se mantenham abertas pelo máximo tempo possível. Isto faz-se através da música, do convívio, da poesia, do tricô, do computador e de muitas outras formas. 

A média de idades está nos 80 anos (o utente mais velho tem 94 anos), mas também há doentes cujo diagnóstico foi feito aos 54 e outro, um caso ainda mais raro, que há cinco meses ainda trabalhava. Uma delas até sabe verbalizar que tem Alzheimer. “Há um padrão de evolução da doença: perda de memória, da linguagem, da capacidade de organização espácio-temporal. Não é um apagão total mas gradual. E cada caso é um caso”, diz a directora da instituição.

Maria está na sua zona de conforto: o sofá à entrada da casa, onde passa a maior parte do dia. Hoje abriu uma excepção e subiu ao primeiro andar, onde vem pedir pão.  Margarida Matos, terapeuta responsável pelo lar, desafia-a para um diálogo: “Então, gosta de cá estar?”, pergunta. “Agora, sim”,  responde a doente. “E está aqui porquê?”, “Porque gosto”, responde de imediato. O diálogo flui com coerência, e Maria consegue até dizer o nome dos filhos. “E que idade tem?”, questionamos. “Isso é que já é um caso sério…”, responde, rindo, consciente das suas limitações. A conversa entra numa fase de confusão, com Maria a garantir que Vítor não é seu marido, mas “um senhor que está casado com outra”.

Doentes resistem à mudança

Nos corredores largos e espaçosos deambulam os que têm maior mobilidade. Uns silenciosos, outros comunicativos, poucos sabem por que aqui estão. “Acham que isto é o trabalho deles, ou que vêm cá para estimular o cérebro. Muitos vêm à força, pensam que os filhos os puseram cá para os castigar”, explica a directora, sublinhando que esta resistência é normal e passa com a adaptação. E que é tão dura para o idoso que fica como para a família que o deixa.

“Zangam-se connosco, sentem-se presos, ameaçam fugir. O nosso trabalho é cativá-los”, diz Fernanda Carrapatoso, recordando dois casos caricatos: o de uma senhora que nem queria abrir os olhos e o de um senhor que estava sempre a dizer que precisava de ir apanhar o comboio. Até ao dia em que uma pessoa que estava de visita à casa achou que era verdade e deu-lhe boleia até à estação.

A segurança é uma regra de ouro: há cancelas nas escadas, algumas portas com código e corredores envidraçados para que os doentes sejam visíveis de vários pontos da casa. “Mas aqui ninguém está amarrado. Consideramos que prender é uma violência que gera mais violência”, afirma a directora, acrescentando que a especificidade da doença exige uma equipa técnica muito especializada. Daí que uma mensalidade na vertente privada (há vagas sociais e privadas) custe 1800 euros.

Nas visitas ao domicílio, o trabalho também é exigente. Tanto há doentes para quem o apoio dos técnicos é apenas uma forma de aliviar o seu cuidador como outros que estão em fase terminal. “A alguns vamos três vezes por dia.

Como os filhos trabalham, estão sozinhos o dia todo. Estão no limite da segurança…”, reconhece Fátima Carrapatoso.

rita.carvalho@sol.pt