O lado negro da humanidade

Somos todos animais. Capazes do melhor. E do pior. É esta brutalidade inata ao ser humano que serve de fio condutor a Propriedade Privada, que sobe ao palco do CCB hoje e amanhã. Esta é a peça mais longínqua que Olga Roriz apresenta no âmbito da celebração dos 20 anos da sua companhia.

Criada originalmente em 1996, em homenagem aos 100 anos da Sétima Arte, esta é uma peça que parte do cinema para falar da condição humana. “O que mais me inspirou não foi este ou aquele filme, mas antes este ou aquele género de cinema. Por isso é uma peça muito violenta e política. Tem o tema do Holocausto – nos interrogatórios, na tortura e nos suicídios. E também mostra outro tipo de violência, muito actual: a violência doméstica, sob a forma de uma violação”. Apaixonada pela vida real, e defensora de que a dança não deve ser abstracta, mas antes um espelho da vida, Olga Roriz mostra, em Propriedade Privada, justamente isto: fragmentos da vida, no que de mais recôndito esta pode ter.

Aquela que é uma das criações com maior carga dramatúrgica da coreógrafa, resulta da mais longa incubação criativa que Olga Roriz já teve: nove meses. “Foi uma peça muito maturada”. Talvez por isto, esta se tenha tornado numa peça icónica da companhia. Uma característica reforçada pelo facto de, em 19 anos, nunca ter sido reposta. Por um lado porque, em 1998, o cenário assinado por João Mendes Ribeiro ficou destruído num acidente. Agora reconstruído por Luciano Silveira, é um condutor de todo o espectáculo. Tudo se passa ali. Por outro lado, Olga Roriz associou sempre esta peça ao elenco que, com ela, lhe deu vida, em 1996. Desse elenco de sete bailarinos, apenas uma, Carla Ribeiro, volta agora a subir ao palco. Para os restantes é uma estreia. Mas a peça é um mimetismo da primeira versão. “Disse, desde o primeiro dia, que não iria mudar nada da versão original”.

Ao longo de cerca de duas horas, uma voz masculina vai discorrendo acontecimentos que marcaram o mundo entre 1900 e 1996. Uma espécie de voz da consciência que nos alerta para as atrocidades ao longo do século XX. Há um sentimento de sufoco, uma necessidade de que alguém nos tire dali, nos salve deste confronto entre o ser humano e o seu lado negro. Deste confronto connosco e com aquilo de que somos capazes. No passado, recorda Olga Roriz, houve muita gente a abandonar a sala nas passagens mais violentas. “Tenho muita curiosidade em perceber como é que as pessoas vão reagir agora”, conclui.

raquel.carrilho@sol.pt