Não sou um intelectual mas tenho um gosto especial e tenho peças que gostava que fossem mostradas aos portugueses. E talvez no futuro isso não seja possível», explica o comendador José (Joe) Berardo, conduzindo alegremente pelas salas do Museu Colecção Berardo o grupo de jornalistas na apresentação da exposição ‘O Olhar do Coleccionador/The Collector’s Eye’. É a primeira vez que o próprio – presidente da fundação com o seu nome alojada no CCB – assumiu o papel de curador. Está notoriamente feliz e não se cansa de repetir que o que o motiva é partilhar com os outros «a alegria de ver arte».
Ao todo são 35 obras, entre peças estrangeiras e cinco portuguesas, pelas quais sente «um afecto especial». Entre essas, a que mais lhe causa felicidade expor é a que está no limite, fora de escala, mesmo para um museu habituado à megalomania da arte contemporânea. Trata-se de um dos panos de cena que Marc Chagall pintou para a inauguração da nova Metropolitan Opera House de Nova Iorque, com a apresentação de A Flauta Mágica, de Mozart, em 1965. O comendador e dono da colecção orgulha-se de – depois de ter feito a compra há 10 anos – ter conseguido, finalmente, esticar sobre uma das poucas paredes possíveis do edifício do CCB o gigantesco linho com 23,5 por 13,5 metros e com pedras semipreciosas incrustadas. «Quando vi o tamanho até me assustei. Foi muito difícil expor aqui, mas conseguimos».
Em Dezembro de 2016 termina o contrato de comodato por dez anos assinado entre o Estado português e o detentor da maior colecção portuguesa de arte contemporânea e esta apresentação é também uma declaração de princípios. «Não sei o que vai fazer o próximo Governo, se quer que a colecção continue aqui ou não», diz Berardo. «Eu gostava que continuasse aqui e em Lisboa, até porque a minha ideia sempre foi que todos os portugueses pudessem ver a arte do século XX, de forma gratuita», diz o empresário que recorda que em miúdo não tinha dinheiro sequer para entrar no Museu de Arte Sacra do Funchal.
«Mas se não for no CCB haverá outra solução», avança um Berardo confiante de que o próximo Governo – «qualquer que seja» – terá de se sentar e falar com «a única pessoa que é dona de cinco museus em Portugal». No dia anterior, conta, tinha sido convidado pelo secretário-geral do PS, António Costa, para um encontro de gente da cultura. «Parece ter uma visão para 10 anos», diz de Costa, mas, no geral, desabafa que «para os políticos a cultura não é uma prioridade, e isso é péssimo».
E há sempre a hipótese radical: «Se for preciso faço eu um museu». Berardo gosta de fazer as coisas «my way» (à minha maneira), como diz, socorrendo-se do inglês que aprendeu quando foi aos 18 anos enriquecer para a África do Sul. «Uma das coisas que a arte nos ensina, e a minha vida é um exemplo disso, é que tudo é possível, não há limites para a imaginação». E recorda os seus museus: na Quinta da Bacalhoa, a sua colecção de peças históricas de Bordallo Pinheiro e a sua ambição de fazer um museu com a vasta colecção que tem reunido de originais do século XVI.
Muro de alegria
Além da obra de Chagall, há outros tesouros que Berardo sacou das reservas do museu depois de um processo doloroso de exclusão. A peça de Frank Stella, Severambia, que marcou a abertura do museu no CCB, em 2006, é uma delas. É um «muro da alegria» e, mais uma vez, é um grande formato, reconhecendo o coleccionador o fascínio que sente pela «grande escala da arte moderna» e pela «desmesura e imaginação». E são obras grandes as que enchem as quatro salas do museu, «peças museológicas que para entrarem numa casa tínhamos que partir as portas». Mais uma lição de que a arte é para «ser vista por todos. Todas as pessoas têm direito a ir à praia e todos temos direito a ver arte», justifica, desenvolvendo a teoria de que a colecção que teve como núcleo do protocolo 862 obras (140 peças foram adquiridas posteriormente) deve estar em Portugal e na capital e acessível a todos. Estas peças (de uma colecção avaliada pela Christie’s em 316 milhões de euros) são também uma moeda de troca internacional. «Agora emprestámos o Bacon, que foi avaliado pelo seguro em 50 milhões de euros», diz o coleccionador. «Também não podemos ter tudo à vista ao mesmo tempo». «O museu é até pequeno para esta colecção», assegura Pedro Lapa, director responsável pela programação desde há quatro anos.
Quanto custa?
Algumas das peças da exposição que Berardo quis assinar são marcos da história de arte. Outras peças permitem-lhe fazer as graças brejeiras e descomplexadas que notoriamente adora. «Esta aqui abre a exposição e podemos perguntar-lhe ‘How much?’». É a obra de George Segal Flesh Nude Behind Brown Door, em que a escultura de uma mulher nua entreabre a porta.
«Gosto muito deste», dirá, apontando para o poético Jardim dos Lírios Lisérgicos, tela de 2009, do brasileiro Walter Goldfarb. Além de vários nomes estrangeiros consagrados, como Basquiat, Roy Lichtenstein, Gilbert & George, o coleccionador escolheu peças dos consagrados portugueses Cabrita Reis, Fernanda Fragateiro, Rui Sanches e Rui Chafes. Para ver a peça de Fragateiro temos de sair do espaço do museu e ir até ao jardim onde está a Caixa (Desmontagem)2 , uma escultura gigante em aço. No lobby do piso 0 (a exposição desenrola-se no -1) estão as sete esculturas de Rui Chafes Perder a Alma, em ferro pintado, e que pela primeira vez foram alojadas numa zona de pé direito muito baixo. No circuito principal encontram-se duas peças de Pedro Cabrita Reis (a quem o museu já dedicou uma antologia) e uma de Rui Sanches.
Joe Berardo revela que só há 15 dias pendurou dois quadros na parede a pedido da mulher: «Vivo aqui rodeado de arte o dia todo. Mas em casa quero ter alternativa, senão a minha cabeça fica desorientada. Em casa só quero ver a paisagem de Lisboa». A exposição ‘O Olhar do Coleccionador’ abriu ontem ao público e termina a 29 de Setembro.