As duas últimas semanas ficaram marcadas por três notícias de violência e brutalidade que deixaram o país de queixo pendurado. Falo das agressões já cediças entretanto virais da Figueira da Foz, do homicídio do adolescente de Salvaterra de Magos e da agressão do agente da PSP ao homem que foi à bola com os filhos ver o Benfica sagrar-se campeão nacional, em Guimarães.
Regressei a este título de Zizék quando vi as imagens da agressão de Guimarães.
Quase nunca vejo vídeos deste tipo de coisas, porque dispenso largamente o sensacionalismo de casos de violência, mas este loop de 30 segundos estava no mural de alguém no meu Facebook e foi inevitável, porque aquilo tem auto-play. Nunca olho para gente à pancada. Nem nos filmes. Neste vídeo fiz o mesmo. Os meus olhos acompanharam a criança que se vê a esbracejar e que depois é levada por mais um agente da PSP. O mesmo sucedeu com as agressões da Figueira da Foz, cujo vídeo não vi porque me parece insano ver semelhante coisa. Também só dei atenção à notícia do homicídio de Salvaterra de Magos quando não tive hipótese de o evitar.
Porque a violência faz parte do nosso quotidiano, não preciso de tomar conhecimento de mais nenhum outro tipo de violência, muito menos da explícita, caso contrário torna-se mesmo impossível querer continuar a viver em sociedade. Ou neste caso, em Portugal.
Estes três acontecimentos recentes vêm sublinhar que algo de muito grave está, de facto, a acontecer no país.
Não sei se será apenas uma crise de valores; temo que o problema seja maior e que estes sejam apenas indicadores de que não é um problema isolado ou geracional, ou por causa das consolas: a violência em que vivemos todos os dias trespassa classes, géneros ou estatutos. É tão transversal como a necessidade de beber água.
Hoje, segunda-feira pós confrontos, uma senhora com a idade da minha Avó está sentada nas escadas do metro do Marquês, apenas horas depois de, por cima dela, o redondel ter sido uma espécie de coliseu em Roma, no tempo do Imperador Tito. A senhora vende umas rodelinhas de crochet porque a sua reforma não lhe chega para os medicamentos. O Marquês é simbolicamente um par de bolachas Maria de violência, mas sem a manteiga no meio. Porque estamos tão pobres que nem para isso temos. Nada.
Diria que em Portugal estamos perante uma crise humanitária, que é mais ou menos a miúda feia nas fotografias, para quem toda a gente olha, mas por sabe-se lá que motivo, ninguém comenta.
Durante um par de semanas, invadem-se os espaços destinados a opinadores e especialistas com opiniões especializadas sobre mil casos isolados, sem que ninguém consiga entender que estamos perante uma catástrofe, que o país é violento por si só, é violentado e instrumentalizado por quem o governa e arremessado para com todos os seus cidadãos, dos acabados de nascer aos quase quase a morrer.
Porque a violência não são apenas os confrontos à saída dos jogos de futebol, os gajos do rugby que bebem uns copos e partem o bar ou os maridos que batem nas mulheres. A violência parece ter sido normalizada e transformada numa forma de espetáculo – já sem 'c' – que se espeta, qual lanceta, nos corpos dos cidadãos anestesiados por uma conjuntura abjecta, maquilhada publicamente por Cavaco Silva, durante uma visita a Paris: Portugal é um dos 30 países mais prósperos do mundo. E já agora, que «a comunidade portuguesa não cria problemas, é bem-vinda e trabalhadora».
Diz o Zizék que é necessário um afastamento para se percepcionar a violência de forma objectiva. E alguém ali na televisão, enquanto redijo esta crónica, está muito preocupado com o mau aspecto que estes confrontos produzem nos turistas de visita a Portugal, este país com o ego a rebentar pelas costuras 'lá fora'.
O nosso problema foi sempre este das aparências. Do mau aspecto. Do que fica bem e do que fica mal.
'Olhe-se ao que se veste, não se olhe ao que se come', já diz o ditado.
E já agora, Senhor Estrangeiro, o que é que achou?
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