Olga Roriz: ‘Estou numa luta com o fim’

Aos oito anos já não tinha dúvidas: queria ser bailarina e coreógrafa. Dedicou toda a sua vida aos palcos, colocando a dança acima de tudo, até da família. Se assim não fosse “seria uma mulher infeliz”. Mas o corpo traiu-a. Uma doença vascular pode afastá-la dos palcos definitivamente. Logo agora, que celebra 40 anos de…

Quando falámos, há uns meses, disse-me que estava numa cama de hospital, não sabia por quanto tempo, mas que podia ir ter consigo para fazermos esta entrevista. A sua resposta denotava uma negação do que lhe estava a acontecer ou uma crença absoluta de que aquele momento iria passar?

O que falou mais alto foi o meu lado profissional. Sabia que tinha de dar entrevistas porque a companhia tem de continuar. Estava prestes a estrear o início deste ano de celebrações. E sentia-me bem, continuava a poder falar e pensar. No momento em que comecei a tomar cortisona deixei de ter dores.

O que aconteceu?

Durante quatro meses doía-me tudo. Tinha dores de cabeça horríveis. Doíam-me as cervicais, lombares, à volta das ancas, na parte de trás das pernas. Doía-me a nuca 24 horas por dia. Estava sempre assim [agarra-se à cabeça e geme]. Foi horrível. Não sei como consegui passar aqueles quatro meses. Só por ser bailarina, estupidamente. Até que um dia perdi a visão…

Foi aí que foi internada?

Sim. Acabei por ficar cerca de dez dias. Mas, mesmo antes de ter perdido a visão, já tinha dito a várias pessoas que achava que tinha alguma coisa na cabeça. Porque andava a fazer fisioterapia, acupunctura… E nada. Até que me diagnosticaram arterite das células gigantes [doença grave caracterizada pela inflamação das paredes dos vasos sanguíneos arteriais, geralmente da cabeça]. É uma doença auto-imune. Sou eu a comer-me a mim própria, a fazer mal a mim própria.

O que sentiu quando soube?

Pensei: ‘Fod…’ [sussurra]. Disseram-me que tinha de tomar cortisona durante um ano e pensei logo no meu corpo. Logo eu, que algum quilo a mais sinto-me logo claustrofóbica dentro do meu corpo. E depois, noutros exames, ainda me encontraram outras coisas. Disseram-me que posso ter um AVC a qualquer instante. Posso ter um AVC agora, enquanto falamos. Disseram-me: ‘Não pode mexer o pescoço, não pode fazer certos movimentos, não pode isto, não pode aquilo. Fora isto faça a sua vida normal’. Adoro quando me dizem isto…

Está optimista, pensa que se resolverá?

Tem dias. Tenho muito cuidado e muito respeito pelo meu corpo. Oiço tudo o que me dizem e faço as coisinhas todas como devo. Por outro lado, tenho o privilégio de ter esta profissão que me faz sair de casa e esquecer-me do que tenho até, pelo menos, às sete da tarde.

As noites são o momento mais difícil?

Sim. Quando fico sozinha e penso nas coisas… É óbvio que estou muito preocupada. Ainda não fiz 60 anos e, neste momento, estou com alguns problemas.

Há sempre a imagem, até por reflexo da sua linguagem coreográfica, de que é uma mulher de força. Quando vive momentos destes existe essa garra?

Sim, percebi que existe. Eu não gostava nada de hospitais e fiz tudo sem anestesias, tubos por aqui e por ali. Cada vez que me diziam para respirar usava as técnicas de relaxamento da dança. Só ouvia os médicos a dizerem: ‘Vejam como ela se porta bem’. Sentia o orgulho de ser forte, de ser uma espécie de paciente profissional, que faz tudo como deve ser. Eu que odeio agulhas, já sou capaz de dar as minhas próprias injecções. Nunca na vida imaginei que daria uma injecção a mim própria!

E agora, qual o passo seguinte?

O médico disse-me que estava a melhorar, que as artérias já estavam menos obstruídas e talvez não precisasse de ser operada. Mas vou todas as semanas a São José fazer exames. E todas as semanas vejo ali a morte, a passar por mim. Isso é uma coisa que fica e que nos faz pensar…

No fim?

Há já muito tempo que penso no fim. Acho que a partir dos 55 anos comecei a pensar vezes demais nisso. Agora estou numa luta com o fim. Sou uma mulher forte, mas contra a morte ninguém é forte. Uma coisa maravilhosa é estar ainda a exercer esta profissão. Há gente que me diz que deveria estar a descansar. Mas não posso. Seria pior.

Numa altura de celebração, em que assinala 60 anos de vida, 40 de carreira e 20 de companhia, saber que o seu corpo a anda a trair é complicado?

É complicado, mas não tem a ver com a celebração. Teria de chegar este momento, mas julguei que fosse mais tarde. Não sei muito bem o que pensar. Ao princípio achava-se que era só uma coisa, mas depois descobriu-se mais isto e aquilo. E agora é o isto e aquilo que me estão a perturbar mais do que a principal doença que me levou ao hospital. Neste momento, tenho outro problema, também vascular, na minha perna, que me está a causar mais problemas que tudo o resto. Em princípio deveria ser operada porque a artéria femoral está interrompida, mas não sei se fazendo uma intervenção dessas consigo dançar.

Como se toma uma decisão dessas?

Não sei. Recebi hoje um email do médico a dizer que temos de falar dos benefícios e não benefícios para a minha carreira de uma operação vascular. O que leio é que a qualidade de vida fica óptima, mas isso é para uma pessoa normal.

Deixar de dançar é o pior pesadelo de uma bailarina, mesmo que esteja prestes a celebrar 60 anos?

Claro que sim. A última vez que dancei foi o solo da Sagração da Primavera, 40 e tal minutos de morrer, e pensei que quem dança aquilo pode dançar muitos mais anos. Agora passa-me pela cabeça que já não vou dançar mais.

Essa foi a primeira obra que dançou como solista e poderá vir a ser a última.

E não é só isso. A primeira vez que, como solista, fiz uma digressão com o Ballet Gulbenkian, foi ao Teatro José Lúcio da Silva, em Leiria. Foi a primeira vez que me pediram autógrafos. E também foi aí a última vez que dancei essa peça. De qualquer forma, mesmo que volte a dançar, os médicos já me disseram que este solo da Sagração da Primavera nunca mais poderia dançar. E isso já é muito duro, porque é algo concreto. É uma peça que adoro e que sei que nunca mais vou dançar.

Além desse medo de não voltar a dançar, o outro pesadelo é olhar-se ao espelho e não reconhecer o seu corpo, consequência dos tratamentos com cortisona, e a razão pela qual preferiu não ser fotografada para esta entrevista?

O corpo e a cara! Acordo de manhã e não me reconheço. Bem sei o que sofro quando olho para o espelho. Quando não estou ao espelho penso muitas vezes que o meu corpo não envelheceu.

A dor é inseparável do bailarino?

Sim. Não sei o que é passar um dia sem dor. O corpo é o nosso instrumento. E dói desde criança. Doem os pés, a barriga das pernas… Dói a vida inteira. Claro que há dores que têm a ver com o cansaço e outras que começam porque o corpo já tem muito trabalho em cima.

Teve de aprender a ignorar as dores?

Pelo contrário. Temos de dialogar com as dores, não podemos ignorá-las. O pior são as dores que vêm sem sabermos porquê. No meu caso, o que me preocupa é que nada é muscular, articular ou ósseo. Sempre estive muito contente com o meu corpo, o meu corpo sempre foi maravilhoso para mim. Até agora, que tenho um problema vascular e não posso fazer nada. Ultrapassa-me e por isso tenho muitas interrogações. Mas há uma coisa essencial para mim: pelo menos tenho de dirigir a companhia e conseguir criar novos espectáculos. Mas a verdade é que já criei muitos espectáculos sentada numa cadeira.

Nasceu em Viana do Castelo, em 1955. As suas primeiras recordações já são marcadas pela dança?

A maioria. Aos três ou quatro anos já dançava muito. Fazia as minhas coisas em casa para apresentar à família. E não eram só danças de criancinha. Fazia cenários, tinha luzes e música. Nessa altura disse à minha mãe que as bailarinas faziam as suas danças, ao que ela me disse que não, que esses eram os coreógrafos. Nem consegui dizer a palavra, mas disse logo que além de bailarina também queria ser isso. Não me fazia sentido que fizessem danças para mim. Queria ser uma bailarina que fizesse as suas próprias danças. Era muito solitária e tímida, não brincava muito com as outras crianças. Lembro-me de uma história que contavam que eu estava na escola, com as outras crianças a brincarem, e eu quieta. Quando me perguntaram o que é que eu estava a fazer, disse que estava a ‘pinsar’. Quando vim para Lisboa, fui viver para a frente do Jardim Zoológico e gostava de falar com os animais.

Foi a sua professora do Jardim Escola a reparar na sua queda para a dança?

Eu ainda não tinha aulas de dança, mas já dançava. A professora até dizia para os meninos fazerem a sesta que, se fizessem, depois eu dançava para eles. Essa professora notou a minha tendência para a dança e disse aos meus pais que eu só pensava naquilo. Mas eles já sabiam.

O que faziam os seus pais?

A minha mãe era jornalista e o meu pai sócio fundador dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. Era o chefe da Sala do Risco e um dos desenhadores dos barcos.

Sente que o percurso que teve deve-se muito à visão deles?

Claro! Só loucos é que acreditam que uma miúda de três anos pode dar alguma coisa como bailarina e vêm a correr para Lisboa para a pôr numa escola. Deram cabo da vida deles, um em Lisboa e o outro em Viana. Um disparate! Eram dois loucos. Acho que a minha mãe sempre quis ser actriz, mas o meu avô não deixou, e eu era um pouco o seu alter-ego, porque a minha irmã foi para Direito. O meu pai era um homem culto, sensível, que lia muito e para ele fazia sentido que a filha, se estava feliz a dançar, fosse dançar. Mas claro que foi muito difícil. Não éramos uma família rica. O meu pai tinha um bom ordenado para Viana, mas não era para ter duas casas.

Ao longo dos anos, como é que os seus pais acompanharam a sua carreira?

O meu pai chorava sempre que me via dançar, era uma ‘Maria Mijona’. A minha mãe era uma palhaça e uma mulher cheia de força. Guardava as fotos todas e os recortes de jornal e as críticas. Mas quando não gostava, dizia.

Com quem veio para Lisboa?

Vim com a minha mãe e a minha irmã, que é mais velha. Comecei a dançar no colégio para onde fui, mas depois os meus pais foram pesquisar e fui para a escola da Margarida Abreu, onde estive até aos sete anos. Depois foi a própria Margarida que disse à minha mãe que eu precisava de ir para uma escola mais séria e sugeriu o Teatro São Carlos.

Nunca pensa que não chegou a ter hipótese de pensar ser outra coisa na vida?

Tive! Os meus pais não me obrigaram a ser bailarina. Ainda pensei tirar Arquitectura. Mas aos oito anos já tinha a certeza que queria ser bailarina. E depois tive o u privilégio de passar uma época maravilhosa no São Carlos, onde funcionava a companhia de dança Verde Gaio e onde conheci o teatro de ópera, onde nós, alunos, fazíamos incursões como figurantes ou bailarinos.

As outras meninas da sua idade liam histórias de princesas, mas a Olga vivia-as.

Pois, ali vivíamos essas histórias, o que era maravilhoso. Mas também tínhamos menos tempo do que as outras porque íamos para a escola, para o São Carlos, depois íamos para casa fazer os trabalhos de casa e dormir. Não havia tempo para brincadeiras nem para festas ou namoros. Mas para quem queria aquilo, era um deslumbramento. Era ter oito, nove, dez anos e viver a magia dos palcos e do faz de conta. E cruzar-me com pessoas como o [Rudolf] Nureyev e a Margot Fonteyn, a Alicia Alonso, a Martha Graham, o Dominique Mercy, director da companhia da Pina Bausch, a Montserrat Caballé, o Alfredo Kraus… Quando vinham cá faziam aulas no nosso estúdio e nós ficávamos a espreitar. Por vezes, já mais tarde, fazíamos aulas com eles!

Mesmo estando a fazer aquilo de que gostava, não teve momentos em que olhou para outros miúdos da sua idade e pensou: ‘Estou farta disto, quero uma vida normal’? Sobretudo quando a adolescência começou a dar sinais…

Pois… Senti várias coisas, sobretudo quando começou a chegar a adolescência. Porque eu era uma apaixonada… Rapazes, olha… [gesticula indicando que eram ‘mais que muitos’] Só que esta coisa de a minha mãe ter vindo para Lisboa, sozinha com as duas filhas, deu-lhe uma responsabilidade enorme. Não podia acontecer nada às miúdas na capital! Ela era muito castradora, ia-me levar e buscar ao São Carlos. A minha irmã era muito mais velha e, de vez em quando, conseguia sair com ela e depois, quando chegávamos aos sítios, ela ia para um lado e eu para outro. Mas a diferença era muito grande e passei a ter duas mães… Por volta dos 18 começo a crescer como mulher e a sentir falta de liberdade.

Sobretudo se tinha tantos rapazes à sua volta e se era apaixonada como referiu…

Comecei a ter os meninos à minha volta. Eles aos pulos e eu aos pulos também. Aí tive uma daquelas fugas à adolescente. Saí de casa. Quis mostrar que não era só a menina certinha do ballet! Caiu o mundo. Ainda por cima fugi num fim-de-semana, com o meu pai cá. Não correu nada bem. Percebi que, para me libertar, teria de casar. Foi o que fiz.

Como conheceu o que viria ser seu marido se mal podia sair de casa?

Conhecia-o desde sempre do São Carlos porque era filho de dois funcionários. Entretanto ele foi para a tropa, voltou e estava mesmo giro!

Chegou a haver namoro?

Houve, houve! Conhecemos os cantos todos do São Carlos! [risos]

Os seus pais sabiam do namoro?

Sim! Era um namorado à séria, não era como os outros que eu arranjava! E os meus pais conheciam-no há muitos anos. Namorámos para aí seis meses e casámos. Eu tinha 20 anos. Nove meses depois tive a Olga. Fiz aulas até ao próprio dia do parto, tinha estado a ensaiar o Lago dos Cisnes. Amamentei três meses e voltei a dançar. Estava ainda no Conservatório.

E o casamento acabou de seguida.

Pois… Estranhamente, a família do outro lado, incluindo o meu marido, achavam que eu casava, tinha filhos e deixava a dança. Quando soube isto, liguei à minha irmã a pedir que me fosse buscar. Fui viver para casa da minha mãe – e entretanto o meu pai reformou-se e veio para Lisboa. Mas já era emancipada. Saía à noite e voltava quando quisesse.

Costuma dizer que não foi uma mãe presente.

Pois não, por causa da separação. Foi muito complicado. Dificultaram-nos muito a vida, a mim e a ele. Nada foi por mútuo consentimento. Mas ele não ficou sozinho a tratar da Olga, tinha os pais.

Quem decidiu que a criança não ficaria consigo?

Às tantas decidi que aquilo não era um embrulho para andar para cá e para lá, era uma criança.

E desistiu?

Não foi tanto desistir. Resolvi que tinha de ser assim, senão ia ser pior, porque ia entrar em guerras. E a criança ia perceber. Percebi que tinha de fazer esse exercício na minha cabeça, que ia fazer a minha vida e que nos havíamos de encontrar e que ela havia de perceber – e felizmente percebeu – que foi muito bom a mãe não ter desistido da sua vida por causa dela. Hoje em dia tem 40 anos.

Falaram sobre isso?

Sim, claro. Até porque ela acaba por ter o primeiro impacto comigo como sendo a bailarina que todas as colegas dela adoravam e que vinha nos jornais e nas revistas… Ela tem muito orgulho em mim. E sabe que, se não tivesse tomado a opção que tomei, seria uma mulher infeliz. Não seria a mulher que sou agora e de quem ela gosta. u

Com que idade se reaproximaram?

Víamo-nos muitas vezes, mas a reaproximação foi aos 18 anos. A partir daí mantivemo-nos sempre na vida uma da outra. E mesmo tendo vivido tanto tempo longe, temos o mesmo sorriso, a mesma voz, uma maneira de pensar semelhante, somos as duas muito desbocadas… Cresceu entre nós uma grande amizade e foi isso que ficou.

Nunca se culpabilizou por, na sua vida, ter posto sempre a dança à frente de tudo e de todos?

Não, porque a dança sou eu. A dança não é uma entidade para além de mim. Sou eu. E eu estou sempre à frente de tudo. E a dança continua a ser a coisa mais importante da minha vida. Creio que será assim até morrer.

Com a sua segunda filha foi tudo mais simples?

Sim. Foi em 1987, estava no Ballet Gulbenkian. Aí correu tudo muito bem. O pai é hoje o director do Teatro São João [Nuno Carinhas]. Já não estamos juntos, mas somos grandes amigos. Ela é actriz Sara Carinhas. Já trabalhámos juntas e temos para breve mais um projecto. É actriz, mas tem uma qualidade de movimento muito específica, não parece uma actriz sem formação de dança. Deve ser a genética.

Até aos 20 anos teve um percurso clássico. Como foi parar ao Ballet Gulbenkian?

Foi uma continuação lógica. No São Carlos tínhamos umas aulas de contemporâneo e no Conservatório fiz workshops com o Vasco Wellenkamp. Ainda fiz os clássicos todos, mas quando comecei a experimentar contemporâneo senti uma coisa diferente. Na Gulbenkian foi a primeira e única vez que tive de fazer uma audição na vida, organizada pelo Jorge Salaviza. E fui escolhida. Há algum tempo que eu sabia que estava preparada para estar ali. A grande diferença é que, quando entramos numa companhia, já não temos mais ninguém a apaparicar-nos. Mas estava a trabalhar para aquilo desde criança, tinha tido dez anos de aulas com a Anna Ivanova.

É nesta altura que começa oficialmente a coreografar?

Ainda demorou algum tempo, comecei aos 23 anos. Tentei os ateliês coreográficos, mas das primeiras vezes não consegui. Entretanto apareceu na companhia o Gagik Ismailian e fizemos algumas coisas juntos. Depois faço a Nina Hagen e nunca mais parei de coreografar.

Como é que uma miúda, das mais novas da companhia, tem a oportunidade de coreografar com música da Nina Hagen?

Era um ateliê coreográfico e eu propus fazer uma peça com a canção ‘Naturträne’, da Nina Hagen, com três homens e uma mulher. Na altura gostava muito da Nina Hagen. Como gostava do Nietzsche. Acho que teve a ver com um namorado que tive. Só gostava de ler ensaios e livros de filosofia. E depois a minha forma de expressão era a dança, era muitíssimo calada. Ao ponto de acharem que era snob. O Jorge Salaviza disse-me: ‘Nina Hagen? Punk-rock-alemão? Não, Olga’. E vem-me com temas do Fernando Lopes Graça. Digo que sim, mas peço para me deixar fazer a outra na mesma. Ele aceitou, desde que não demorasse. Fiz a peça em dois ou três dias e foi uma coreografia que se tornou a assinatura do Ballet Gulbenkian durante muitos anos.

Sentia-se respeitada como coreógrafa? Era muito jovem e não havia muitas mulheres na área.

Desrespeito não sentia. Mas havia muitas dúvidas e inseguranças. Havia uma ou outra pessoa que achava que eu era uma miúda, embora me reconhecessem talento, mas não era assim com toda a gente. Lembro-me que não saía logo do estúdio a seguir aos ensaios. Deixava as bailarinas irem primeiro para poderem dizer mal de mim à vontade e só depois é que ia tomar o meu duche. Depois, no próprio estúdio, havia confrontos do género: eu pedir uma coisa e um bailarino achar que não devia ser assim. Lembro-me que ficava atrapalhada e ia para casa pensar naquilo. Mas nunca dava o braço a torcer. Podia errar, mas não podia ir para lá com dúvidas.

O que a levou a sair do Ballet Gulbenkian?

Já não dançava muito com o Ballet Gulbenkian, dançava mais os meus solos e fazia as minhas coreografias, e tive um convite para ir dirigir a Companhia de Dança de Lisboa. Acho que foi o momento certo: queria desenvolver um outro método de trabalho que tinha descoberto com os meus solos. Estive quase 20 anos no Ballet Gulbenkian. Dois anos depois, a CDC não funcionou muito bem, mas tinha os bailarinos e achei que era normal continuarmos. E assim nasce a Companhia Olga Roriz.

Sempre disse que não gosta de fazer balanços. Ainda assim, celebrar 40 anos de carreira é importante?

Sim, claro que é… Mas, no meu ponto de vista, só ando a fazer o meu percurso. A minha vida é normal. Com mais ou menos dificuldades. Quando uma pessoa me pergunta como é que se tem uma companhia independente 20 anos, com esta qualidade… Claro que não foi fácil, foi com muito trabalho e perseverança.

Quais foram os critérios para escolher as peças a remontar, neste ano de celebrações?

Primeiro que tudo escolhi as peças que eu gostaria de rever. Obviamente que, num segundo pensamento, fui perceber o porquê dessa minha escolha um pouco instintiva. E percebi que são peças que têm um peso importante. Como esta peça que hoje estreia no CCB, Propriedade Privada [ver artigo na secção de Cultura do SOL].

A crise dos últimos anos dificultou muito o trabalho da companhia?

Por um lado, passámos do espaço da Tranquilidade para o Palácio Pancas Palha, o que significou passarmos de um estúdio para três e de um escritório para quatro. Obviamente que é um espaço cedido pela Câmara e é uma situação precária: o espaço pode ser vendido e nós temos de sair dali. Depois, esta mudança fez com que conseguisse abrir a companhia para a formação, dentro do meu próprio método de criação e da dança-teatro, que é algo que dá visibilidade à companhia e uma assinatura de qualidade. No entanto, a crise também foi catastrófica no sentido em que perdi bailarinos. Ou seja, no início da crise, passei de ter contractos de um ano com os meus cinco bailarinos, para ter contractos de dois ou três meses, só quando tinha criações. E depois vão-se embora. Quando temos uma digressão ligo-lhes, mas às vezes não podem porque tiveram de arranjar outros trabalhos. Para mim, este foi um dos grandes problemas da crise.

Irrita-a que a tratem como a Pina Bausch portuguesa?

Depende da maneira como o dizem. A Pina Bausch tem a importância que tem e, de certa forma, é um privilégio dizerem isso. Mas já foi um fantasma meu. Fui muito comparada com ela. Todos somos influenciados, mas quando comecei a conhecer o trabalho dela, já eu tinha também feito muitas obras importantes. Mas temos características comuns. O que me interessa pôr no palco é a vida, os homens e as mulheres, os seus medos, os seus confrontos, os seus amores e desamores. Sempre foi isso, desde miúda. O que me fez pôr em palco homens e mulheres com roupas normais, de rua, foi porque queria ver a vida em palco.

À beira dos 60 anos, e com os problemas dos últimos tempos, ainda consegue ter mais planos para o futuro do que pensamentos em relação ao passado?

[Silêncio] Não sei… Não sei. Quase nunca tive sonhos. Mesmo em criança não sonhava, eu já era. Não sonhava fazer ballet, eu era bailarina. Mas continuo a sonhar vir a ter um teatro.

raquel.carrilho@sol.pt