Sobre o meu prato caem ovas de bacalhau fatiadas que se desfazem em milhentos grãos na minha boca. Depois como búzios bem frescos, cortados aos pedaços, com a consistência correcta, para não serem confundidos com borracha. Ensopo o pão no molho de azeite, vinagre, cebola e pimenta que tempera os petiscos. A côdea estaladiça sarapinta a mesa de migalhas. Acompanho com uma cerveja. No sul chamam-lhe imperial – aqui, fino é o seu nome. Bebo-a em largos goles para não ficar mole.
Três mulheres com avental hasteado até ao pescoço caminham por entre as mesas de clientes famintos. O serviço de mesa é parco em formalidade, mas acolhedor na hospitalidade. As travessas aterram como naves espaciais. Estou certo que a tripulação bate o dente por causa do bruto embate na mesa. Na minha, ainda aterra um pratinho de camarão que está cozido no ponto. A casca sai em dois golpes e quando trinco o bicho sinto a sua carne suculenta e consistente, mas ao mesmo tempo macia, que me inspira a frescura do Atlântico onde foram capturados.
Avisto travessas a aterrarem noutras mesas. Umas com carnes assadas e outras com peixe fresco da costa. Este local é um notável aeroporto gastronómico.
Pago a conta – foi justa – e meto dentro de casa os últimos botões do casaco, para encostar a gola ao pescoço. À saída leio um papel mal colado na parede: 'Sábado há arroz de lampreia a partir das 17horas. Obrigado'.
Filigrana arquitectónica
Vou pelas ruas fora. Acendo um charuto nicaraguense e ouço as solas das botas a ressoar ao longo da margem do rio. Nesta parte da cidade foram construídos edifícios da melhor filigrana da arquitectura portuguesa. Parecem mais majestosos por causa da lua cheia que os ilumina. Alguns são de arquitectos vencedores do prémio Pritzker. A Biblioteca Municipal é de Siza Vieira. O Centro Cultural é de Eduardo Souto Moura, que o concebeu para ser inaugurado no encerramento das comemorações dos 750 anos do foral da cidade. Custou 13,1 milhões de euros a sua construção. Aqui perto, está a Praça da Liberdade com os edifícios administrativos que a envolvem, assinados por Fernando Távora, o mestre de Siza. Foi também ele que traçou o Anfiteatro dos Serviços Centrais do IPVC (Instituto Politécnico de Viana do Castelo).
Entre as jóias arquitectónicas da cidade, registo o Hotel Axis Viana Business, de Jorge Albuquerque, a Bilblioteca e Anfiteatro do Instituto Politécnico de Bernardo Távora, o conjunto edificado no Largo das Almas e o projecto no novo mercado, dos arquitectos Alves Costa e Sérgio Fernandez. Haveria muitos mais para referir, mas já me encontro a passar por baixo da ponte desenhada por Gustave Eiffel. Estou no local onde combinei encontrar-me com os pescadores que me vão levar a pescar lampreia. São quase dez da noite. Continuo a deleitar-me sem pressa neste 'puro' magnífico. Ele aquece-me enquanto espero os pescadores.
À noite no Lima
A pequena embarcação transporta dois pescadores e a mim. Vou calado. Eles pouco conversam. Sabem todos os procedimentos de cor. São cúmplices nos gestos um do outro. Há um foco de luz, como se fosse o candeeiro de uma secretária, que incide sobre o convés. Mais embarcações andam por aqui. Numas ouve-se o burburinho do rádio a tocar. Noutras, diálogos que se tornam grunhidos quando ouvidos ao longe. O frio sente-se mais na água que em terra. Felizmente, estou bem protegido. O colete de salvação contribui para o meu bem-estar.
O barco faz um pequeno percurso ao longo do rio para eu mirar a cidade. Identifico no alto da serra o Santuário de Santa Luzia. Parece a basílica de Sacré Coeur, em Paris. A diferença é que tem vista para o mar e sobre a cidade com não mais de 90 mil habitantes.
Desbloqueio o silêncio da embarcação quando percebo que é importante falar de futebol. Dado o pontapé de saída, a conversa flui. Eles são adeptos do Porto e eu do Benfica.
Começam a puxar as redes. As primeiras duas lampreias a cair no convés serpenteiam descontroladas e embatem nos nossos pés. “Deixa-te estar quietinha”, diz um dos pescadores.
Parecem cobras gordas. Têm aspecto viscoso e cartilaginoso. A miríade de dentes na boca cilíndrica justifica a alcunha de 'vampiro do mar'. Alimentam-se de salmão, bacalhau e os mais variados mamíferos marinhos, atacando com índole de parasita. Furam-lhes a pele com os dentes, e com a saliva, que impede a coagulação, sugam-lhes o sangue.
“Isto está muito mau. Há pouca lampreia”, diz um dos pescadores. E eu que pensava que a safra de hoje estava a correr bem. Conseguiram seis lampreias. “Antigamente pescava-se muita e vendia-se a bom preço. Hoje em dia até vêm de França para serem vendidas em Portugal”.
O navio transformado em museu
Estacionado na antiga doca comercial está o navio-museu Gil Eannes. É branco como uma gaivota e os seus 98,450m de comprimento não passam despercebidos. Acompanhou muitas das Fainas Maiores (pesca do bacalhau) nas gélidas águas do Norte Atlântico (Terra Nova e Gronelândia) acolhendo mais de 1000 doentes numa só campanha.
Construído nos estaleiros navais de Viana do Castelo em 1955, durante décadas serviu de hospital. Foi morrer em Lisboa e ali ficou sepultado até ressuscitar para ser museu.
Visitá-lo é respirar os tempos áureos de actividade. Espreito a casa do leme, os aposentos do capitão e os camarotes dos telegrafistas. É tão fidedigna a reconstituição que consigo imaginar-me no mar, na década de 60, com dóris à volta do navio-mãe e enormes blocos de gelo a flutuar.
Subo e desço escadas de ferro, passo por portas pesadas que dão acesso à barbearia, à cozinha, ao bloco operatório, a tudo o que possam imaginar num hospital sobre água.
No convés exterior aproximo-me da proa e vejo embarcações de pesca em actividade, carros parados nos semáforos, pessoas a caminhar, bicicletas a passar, todo o ritmo natural de uma cidade com vida.
Sugiro que estudem a hipótese de tornar o museu mais interactivo. O recurso a sons e vídeos que nos catapultem para o passado do navio tornará a visita ainda mais empolgante. Por vezes, não é preciso muito para se conseguir bastante.
À boleia da escola
A aurora primaveril ilumina o meu acordar. A suave neblina matinal esconde a linha do horizonte, que separa o céu do oceano. As gaivotas saltitam por entre velhas redes e boias, amontoadas num canto qualquer junto à doca. Parto com apenas um café e uma torrada no estômago. Ainda estou para saber se enjoo ou não no mar.
Dirijo-me para o Clube de Vela de Viana do Castelo, fundado em 1979. As recentes instalações estão integradas na área de intervenção do Plano de Pormenor da Frente Ribeirinha, junto ao novo porto de pesca. É uma escola aberta a todos os interessados na prática de vela. Quem se quiser inscrever tem as portas abertas.
“Também recebemos alunos de escolas. Têm aulas de vela no contexto do ano curricular”, diz-me Manuel Cruz, um dos elementos do clube. Estou certo que todos os que participam nestas aulas vão ter uma relação umbilical muito forte com a identidade de Viana do Castelo. O passado da região está intimamente ligado às actividades marítimas.
O clube tem diversas classes de vela (Optimist, Vaurien, Acess, 420, Laser) e barcos para passeios no rio Lima e no oceano. É numa dessas embarcações que sigo à boleia.
“Então vamos lá! Aperte o colete e sente-se aqui. Quando quiser que eu pare, basta avisar”, diz-me o Sr. Manuel.
Ultrapassados os molhes, a embarcação continua de frente para a ondulação. O som do motor varia de agudo a grave, à medida que a hélice mergulha mais fundo. A pouco mais de uma milha da costa, começamos a navegar paralelos à terra. Começo a tirar os equipamentos da mala ao mesmo tempo que estico os músculos das pernas. Filmo, fotografo e gravo os sons do mar que se ouvem daqui, depois do motor desligado, a meu pedido. O barco vai bailando ao ritmo da corrente. Observo o monte de Santa Luzia e seu santuário, enquadrado numa densa mancha verde de vegetação. A cidade está no sopé do monte. Vejo algumas ventoinhas para gerar energia, instaladas de forma avulsa. Há gruas para carregar embarcações. As maiores parecem-me ser as dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, que outrora empregaram grande parte da população.
Mais a Sul, passamos pelo Cabedelo, Rodanho, Amorosa e Castelo do Neiva. Há de tudo um pouco: habitações sem interesse arquitectónico, areais apelativos, enquadrados por vegetação serrana, e alguns finais de terra bastante rochosos.
“Enjoado?”, pergunta-me o Sr. Manuel. “Quando precisar, coma maçãs verdes e bolachas de sal”. Por acaso estou impecável. O trabalho distrai-me o organismo desses imprevistos.
Final de dia perfeito
Apesar de andar à boleia de barcos, também me desloco bastante a pé. Eles não são estacionáveis como os automóveis e por isso, necessito de caminhar para chegar a determinados sítios.
Vou a passos largos por causa da hora. O sol deste final de tarde está em chamas. Deixo para trás outros areais, para me entregar à peculiar praia de Belinho. Ela é musical e sensual ao toque. Em vez de ser de areia é em formosos seixos e calhaus rolados. São milhares deles, de muitas cores, ao longo de 2,5 km. Descalço-me e caminho sobre as pedras. Acho que descobri a melhor praia para reflexologia podal. Mas esta beleza deve-se a um fenómeno preocupante: a erosão da nossa costa.
Está preia-mar. Cada onda que se recolhe, depois de cair em terra, faz um som que parece um ganzá. Os meus ouvidos ficam cheios desta melodia. Tenho vontade de continuar a descobrir locais como este.