“Este espaço era aquilo que em economia se designa de não-cidade e em termos artísticos de não-lugar. A Porto Lazer [empresa municipal] percebeu que há aqui potencial, porque estamos no centro histórico e ao lado da estação de comboios mais bonita do mundo. Com esta intervenção, procurou que passasse a ser um lugar de paragem”, explica a directora artística Cláudia Melo. O Locomotiva arrancou a 21 de Março, com projectos não só no novo largo e na vizinha Rua da Madeira – cuja função de ligação à Praça da Batalha estava bloqueada pelo aspecto sombrio e má fama -, mas também noutras artérias envolventes, que formam um percurso circular. O programa inclui arte urbana – de que é exemplo a gigantesca malha verde que os Fahr 021.3 instalaram nas ruínas da fábrica da Oliva, do outro lado da estação -, performance, animação, concertos e muitos workshops e projectos comunitários. Porém, primeiro houve que redesenhar o espaço público.
O lugar da nova praça é histórico: antes da construção da Estação de S. Bento (que data de 1896) existia aqui o Mosteiro de São Bento de Avé-Maria e a Porta de Carros, que abria a cidade a Guimarães ou Braga. Um equipa de arquitectos liderada por Rodrigo Patrício preocupou-se mais em reocupar do que em reabilitar: “Quisemos que a Rua da Madeira fosse parte de uma espécie de teatro italiano, por isso elevámos a cobertura”. Os primeiros resultados destas movimentações já se fazem sentir: pode ter sido coincidência, mas ainda a Locomotiva dava os primeiros passos e já se instalava na Rua da Madeira a Riquitó Tours, que oferece viagens de riquexó pela cidade. E Cláudia Melo sublinha que já há “ateliês de artistas” a ocupar espaços devolutos. “O acolhimento da comunidade residente foi de extrema receptividade, quer por parte dos negócios já existentes quer por parte da população. A pouca gente que ainda aqui vive está a ver uma dinamização que há muitos anos não existia”.
Passarinhos, tascos e azulejos
O agora renovado Largo da Estação foi, até há cerca de dez anos, palco para a chamada Feira dos Passarinhos, onde se vendiam, como o nome indica, as mais variadas espécies de pássaros. A passagem da feira para a Cordoaria foi mais uma machadada, como recorda Antonio Monteiro, de 38 anos, que há quatro anos tomou conta do Viseu no Porto, uma tasca à moda antiga situada no início da Rua da Madeira. “Há uns anos atrás havia muito movimento, que se foi perdendo com a degradação. A Locomotiva trouxe gente nova e a rua está mais limpa. Não arrasta multidões, mas pode puxar por outros negócios, porque se houver só hotelaria isto volta a morrer”. António, que tem como parceira a mulher Maria La Salette, sabe do que fala: o pai trabalhava na CP e por isso conseguiu que o filho se empregasse nesta casa centenária, logo aos 13 anos.
O Viseu no Porto não é um sítio para estômagos frágeis: tripas, lombo assado, presunto com queijo da serra, rojões e moelas são alguns dos pratos mais populares, habitualmente acompanhados por um copo de tinto de São João da Pesqueira. “Os tascos é que são a alma do Porto. Dantes eram vistos como locais só para bebedolas, mas esta geração mais nova já adere e até bebem a sua tacinha de vinho”, nota António Monteiro. Alguns desses jovens só conhecerão a Rua da Madeira por causa do Gare, um clube/discoteca que abriu em 2008 e que é um dos principais poisos da movida da Baixa. É precisamente na sua fachada que vai surgir o maior painel colaborativo do país: residentes, portuenses em geral, meros curiosos e até turistas são convidados a pintar alguns dos mais de 3.000 azulejos que serão depois agrupados pelo mentor Miguel Januário, do projecto ±MaisMenos±. Trata-se de uma espécie de evocação dos famosos painéis de Jorge Colaço, que decoram o hall da estação com cenas da História de Portugal.
“É a alma das pessoas que fazem a cidade que está a trabalhar e colaborar connosco. Daqui a 30 anos vão poder passar aqui e os azulejos estarão lá”, explica o artista, activista e designer, que falou ao SOL à porta do improvisado ateliê onde se realizam os workshops, sempre aos domingos. Os armazéns da REFER não escondem as cicatrizes do abandono. Encontramos aqui pessoas de diferentes faixas etárias, motivadas por ideias muito distintas, mas nenhuma tão bem definida como a da brasileira Cacilda Espíndola, de 43 anos. A residir no Porto há três anos e em Portugal há sete, resolveu pintar um balão de banda desenhada em que se lê 'Sou de partidas…'. “Esta é uma cidade que recebe muito bem os imigrantes. Sou artista e achei importante participar”, justifica a criadora da marca de joalharia Guerreira de Lança. Na semana seguinte voltaria para pintar uma segunda vinheta: '…e chegadas'. Como ruído de fundo, os avisos sonoros da Estação de São Bento parecem justificar a opção.
Neste mesmo domingo, decorre uma oficina de impressão 3D destinada a crianças, que aborda a partir desta tecnologia os contos e lendas das redondezas. Há a história da freira do antigo convento que continua a pregar uns sustos, do médico que ali residia e terá morto várias pessoas e, agora sem ponta de ficção, do incêndio do antigo Teatro Baquet, que ardeu por completo numa noite de 1888, provocando dezenas de mortes. Calma, porque estas tragédias são contadas de uma forma muito romanceada e contrabalançadas por histórias alegres. Este grupo de crianças tem uma característica bem peculiar: quase todas são de famílias oriundas do Bangladesh, a comunidade mais presente nas redondezas.
A crise que leva os imigrantes
A mais faladora de todas estas crianças é Nazifa Zaman, de 11 anos, que admite sentir-se meio portuguesa, meio bengali e muito interessada pelas histórias das ruas do Cativo, Loureiro ou Cimo de Vila, que percorre a correr. Por aqui não há brincadeiras em português, porque todos os miúdos vêm de outras paragens. Chegaram a ser cerca de 60, hoje são 17 ou 18, porque a crise levou muitos imigrantes a mudar-se para a Inglaterra, Suíça ou Noruega. No Grande Porto deverão viver cerca de 300 bengalis, mas chegaram a ser 600, a maioria deles com negócios ou residência por estas bandas. Até construíram uma pequena mesquita, na Rua do Loureiro, deixando a sua marca num território onde também se cruzam paquistaneses, marroquinos, indianos e chineses.
“Temos sentido muitas dificuldades desde o ano passado, porque o negócio caiu e não conseguimos suportar as despesas. Há cada vez mais impostos, água e luz a aumentar”, garante Shah Alam, de 46 anos, o presidente da Associação Comunidade de Bangladesh do Porto, na Rua Chã. Foi um dos primeiros a chegar, em 2001, após nove anos em Lisboa, e mais cidadãos do seu país se seguiram, atraídos pelas lojas vazias e rendas baratas. Sempre se deram bem com os poucos portugueses que ainda resistem, mas agora até Alam pensa em voltar a emigrar e abandonar a sua loja de roupa e brinquedos no número dois da Rua do Cativo. A Locomotiva é uma esperança, porque trouxe vida a uma zona “quase morta” a partir do momento em que o relógio bate as seis da tarde.
Shah Alam é agora responsável pela banca do projecto Objectos desta rua, que tem um duplo propósito: recolher lixo para construir brinquedos como carrinhos de rolamentos e objectos que possam contar a história daquela comunidade, num museu comunitário efémero. Guilherme Coutinho, de 67 anos, participou neste desafio ao emprestar um armazém que usava para o seu negócio, situado um pouco acima, na Rua Cimo de Vila. O proprietário da Casa Crocodilo, que cresceu no velho bairro e dedicou toda a vida ao negócio de artigos para calçado e marroquinaria fundado pelo pai, em 1948, conta com prazer o episódio que deu nome à casa. Uma senhora propôs ao pai, Tomás Coutinho, a venda de um crocodilo embalsamado que trouxera do Brasil e assustava os filhos. O negócio fez-se “por 30 escudos”, o animal foi colocado na loja e, no dia seguinte, era tal o amontado de pessoas que queriam mexer nas suas unhas e dentes que “foi preciso chamar a polícia”. O crocodilo ainda lá está, pendurado no tecto, e é protagonista de uma das mais contadas histórias naquelas ruas.
Guilherme Coutinho admite que a rua é “mais triste” do que nos seus tempos de criança, mas ainda vão acontecendo umas “zaragatas” entre moradores, que são boas “para turista ver”. Aliás, a abertura de hostels como o Tattva “vão dando um certo ânimo para continuar” um negócio com quase 70 anos. Não deixar morrer o comércio tradicional e estimular o surgimento de novas iniciativas é precisamente a grande aposta da Locomotiva, que tinha financiamento comunitário até final de Junho, mas já garantiu a continuidade até Setembro. Depois, a Porto Lazer promete manter alguma dinamização até que este bairro com uma estação de comboios no meio cure as feridas do êxodo de gente e negócios e encontre o seu lugar no Porto do século XXI, que depende como nunca do turismo.