A maior surpresa ocorreu em Barcelona, ganha pela oposição aliada ao Podemos, e cuja nova alcadesa, Ada Colau, é uma activista do movimento antidespejos que se impôs como figura muito respeitada e popular na capital catalã. O fenómeno reflecte a crise profunda na qual se debatem a outrora próspera Catalunha e a sua principal e mítica cidade, pondo em causa as velhas formações independentistas e confirmando o apagamento dos partidos centralistas.
Já em Madrid, será outra mulher, a ex-juíza Manuela Carmena, igualmente afecta às novas correntes desligadas do bipartidarismo tradicional pós-franquista, e também apoiada pelo Podemos, quem ocupará a presidência municipal em aliança com os socialistas.
O aspecto porventura mais interessante destas candidaturas femininas nas duas principais cidades espanholas é a sua reivindicação comum da cidadania como força de inspiração e legitimação.
O novo partido de esquerda Podemos constituiu a base política principal das duas candidaturas, mas teve a inteligência de não arregimentá-las e instrumentalizá-las sob a sua bandeira. Ou seja: percebeu que a irradiação pessoal das candidatas e a genuína vontade de mudança encarnada por elas ultrapassava as velhas e novas fronteiras políticas onde o Podemos se inclui. Barcelona e Madrid tornaram-se, assim, palco de duas novidades a acompanhar com toda a atenção.
A crise do bipartidarismo espanhol foi sobretudo confirmada pela forte erosão eleitoral do PP e a demissão em cadeia de alguns dos seus líderes regionais, contestando a liderança de Mariano Rajoy. O PSOE, embora aproximando-se do rival da direita, foi também atingido em cheio pela vaga de insubordinação política que atravessou a Espanha – para além dos resultados atribuíveis directamente aos novos partidos situados à esquerda e ao centro-direita: o Podemos e o Ciudadanos.
O espartilho bipartidário tende a romper-se, embora seja ainda cedo para prever o impacto que estes sismos eleitorais terão nas legislativas do fim do ano. Sabe-se, em qualquer caso, que a paisagem onde decorrerão se alterou profundamente.
Dir-se-á, com propriedade, que este fenómeno não é transponível para Portugal, onde a bipolarização entre PSD/CDS e PS parece dificilmente superável, na ausência de novas forças políticas com capacidade de afirmação num cenário de coligações ou alianças.
O desaire anedótico da última reunião do partido de Marinho e Pinto, ‘invadido’ por uma pequena multidão de votantes intrusos de última hora, é sintomático da sua falta de credibilidade. E, à esquerda, o PCP ou o Bloco mantêm-se fechados a sete chaves nas suas fortalezas sem horizontes viáveis, enquanto o Livre e respectivos associados continuam, aparentemente, sem conseguir levantar voo. Não é Podemos (ou Ciudadanos) quem quer.
Os próprios partidos com aspirações a governar só por improvável milagre obterão maiorias absolutas. A coligação da direita, aprisionada pelo passado, limita-se a virar o disco e a tocar o mesmo. Quanto ao PS, os seus esforços meritórios para lançar uma base programática credível esbarram em contradições de que o exemplo mais notório é o bico-de-obra da sustentabilidade da Segurança Social – com os avanços e recuos em relação à TSU.
Se o actual Governo não sabe onde arranjar financiamento para o buraco da Segurança Social – a não ser diminuir ainda mais as pensões, como Maria Luís Albuquerque admitiu na sua já célebre gaffe –, o PS vai fazendo apostas em expedientes cuja consistência se afigura duvidosa. Afinal, de que serve prescindir da TSU, se não houver outras alternativas devidamente quantificadas?
À sensação de bloqueio em que ainda vivemos contrapõem-se os ventos que vêm de Espanha (e podem não ser necessariamente maus, tal como os casamentos). Sente-se, aqui ao lado, um refrescante sobressalto de mudança e uma abertura a novos caminhos que, em Portugal, temos dificuldade em vislumbrar.
Pelo menos, há em Barcelona e Madrid duas mulheres com vontade genuína de alterar a fatalidade das coisas, apostando na força mobilizadora da cidadania. Um capital que tanta falta faz politicamente em Portugal.