De cuecas na Apúlia

A minha viagem começou há três semanas. Não está a correr como eu planeava. É difícil conseguir boleia de barco, até porque por vezes o mar está tão bravo que nem o mais destemido pescador se atreve a enfrentá-lo.

Estou em Esposende. Vou aproveitar o soninho das ondas. Está a iniciar a baixa-mar e o mar parece uma sopa.
Salto para dentro da castiça embarcação de forma atabalhoada. Depois de tanto insistir, convenci uns pescadores a fazerem-me este favor: levar-me até Apúlia, que fica antes de Póvoa de Varzim. Não bastando ser pouco desejado nesta viagem – afinal de contas, fiz-me de convidado – ainda me atrevi a pedir-lhes um cigarro. Não é o momento oportuno para degustar um charuto e fico-me por este fino rolo de papel com tabaco.

“Mas que raio anda você a fazer à boleia de barcos?”, pergunta-me uns dos pescadores, num tom que quer dizer que afinal sou bem-vindo. “Não era mais fácil ir de carro?!”. Respondo-lhe com uma baforada de fumo misturado com um sorriso de quem está nervoso. 

“Você vai ter de sair na água”, explicam-me. “A maré está baixa e por isso consegue ir pelo próprio pé até à praia”. Estou reticente. Sei nadar mas não me apetece entrar nestas águas frias. A temperatura ambiente ronda os 14 graus.

Descalço-me, dispo as calças e meto tudo embrulhado na mala. Em cuecas, espreito a temperatura da água com a ponta do dedo maior. Está fria. Tenho mesmo de ir. Começo a mergulhar o corpo devagarinho. A água fica-me acima do umbigo, a tocar nas bainhas do colete salva-vidas. Espeto os dedos dos pés na areia, para dar os primeiros passos em direcção à praia. Estou todo arrepiado. Os meus joelhos estão dormentes. As pernas parecem de vidro. Com os braços no ar, como se estivesse a render-me à polícia, vou-me deslocando. Sinto-me ridículo. Identifico algumas rochas, como se o meu corpo, da cintura para baixo, fosse um submarino. Subo uma rocha mais à frente. Aqui a água dá-me por baixo da cintura. Estou em segurança. Um dos homens devolve-me a mala, atirando-a pelo ar como se fosse um disco olímpico . Seguro-a à primeira. Levanto o braço trémulo de frio para me despedir deles. Partem como uma flecha. Nem uma foto consegui tirar. 

Chego a Apúlia em cuecas, com uma mala às costas. Visto-me e dou uma vista de olhos
pelos moinhos nas dunas e pelos barcos coloridos que mantêm a tradição. 

A Apúlia é popular por causa da apanha do sargaço. Os homens e as mulheres enfrentam o mar com o galhapão (saco de rede de fio de sisal grosso e de uma malha larga, com cerca de dois metros e vinte de comprido, preso a um arco de meia volta de madeira de loureiro, carvalho ou salgueiro). Com um cabo de madeira de 2 metros de comprido, os sargaceiros apanham as algas para as usar na fertilização dos terrenos agrícolas. De Maio até Setembro, por força das marés vivas dos equinócios, é provável que os encontrem a enfrentar águas muito encapeladas. 
 
O email
Preciso de uma embarcação para percorrer a costa, a partir da Póvoa de Varzim. 

Preparo a viagem com emails e telefonemas. É neles que vêm parte das confirmações. Mesmo assim, vence a regra do improviso.

Sento-me num café meio enterrado na areia para beber um chá. A janela virada para o mar causa-me a sensação de ter a praia pelo pescoço. Entretanto, recebo o tão desejado email. A Marina de Póvoa de Varzim confirma-me uma boleia, amanhã às nove. Continuo a pôr a caixa de correio em dia e verifico que tenho mais um email para ler. É de um velho amigo que me sugere a francesinha poveira, no café Guarda-Sol, na avenida da praia.

Não faço ideia de qual o estabelecimento em que me encontro. Mas quando pego na ementa fico cheio de orgulho no meu instinto gastronómico não me deixou ficar mal. Estou precisamente no café sugerido no email. 

A hora já convida a comer. Considero este momento o ideal para quebrar a rotina com sabores a mar.

Servem-me a dita francesinha que o Sr. António Carriço, proprietário do café, diz que inventou. A receita estatelada nas paredes, para todos verem, diz que o molho é de manteiga, ketchup, vinho do Porto, brandy, sal e piri-piri. Quanto à francesinha, ela é ao comprido, com a forma de um cacete. É recheada com fiambre, linguiça, queijo e mostarda. Depois passa pela tostadeira antes de chegar ao prato. Terminada a refeição, respondo ao meu amigo com um obrigado e uma foto da francesinha em anexo.

A segurança no mar

Os naufrágios acontecem em qualquer parte do mundo. Os portugueses, e em particular de caxineiros, estão entre as suas vítimas. A perda de um pai deixa marcas indeléveis na família.

As causas dos naufrágios podem ser muitas. O mar é um enorme destino que decide o que fazer com as embarcações ínfimas. Quando um pescador naufraga, trata-se de um acidente de trabalho. Ocorre-me que, tal como um cirurgião usa luvas e bata, também o pescador deve ter roupa adequada. 

É por isso que decido visitar uma empresa que fabrica calças para pescadores que podem fazer a diferença. Situada nas imediações de Póvoa de Varzim, a Toptuxedo desenvolveu as Atlantis. Elas flutuam e a sua cor fluorescente vê-se à distância nas águas oceânicas. São exportadas para a Dinamarca, Noruega e EUA. 

“Curiosamente, em Portugal não estamos a conseguir comercializá-las como desejamos”, diz-me Artur Costa, um dos colaboradores da empresa. 

Trabalham aqui 44 pessoas. A maioria são mulheres e vivem nas redondezas. As suas mãos que cosem as calças, cozinham também o jantar dos maridos que são pescadores. Espero que as calças Atlantis, que esta empresa distribuiu pela comunidade de Caxinas, contribuam para o salvamento de famílias. Por pouco mais de setenta euros, os pescadores podem evitar uma tragédia.

Little Manhattan

A marina de Póvoa de Varzim dispõe de 241 postos de amarração. Na época em que a visito, a maioria das embarcações estão aparcadas em seco, no vasto espaço em terra, mesmo ao pé da água. Suspensos sobre cavaletes, os veleiros desenham-se em sombras sobre o chão. Passo por gente que está a tratar dos cascos, para mais uma temporada de navegações.

O tilintar dos poleames dos mastros não é suficiente para enxotar um bando de gaivotas descaradas à volta de um bocado de peixe, mesmo à minha frente. Um gato zarolho, com pêlo malhado, olha para mim durante uma fracção de segundo antes de se pisgar.

Carlos Fortes, coordenador técnico do Clube Naval Povense, é quem me vai levar num barco pneumático vermelho. 
Mete o motor a trabalhar à primeira. Sem grande hesitação aponta a proa para a saída da marina, protegida por longos molhes, sobre os quais conversei com alguns pescadores que se queixaram da maneira como foram construídos. “Tudo o que tiramos ao mar, ele vem buscar” foi uma frase que retive das conversas.

A brisa arrepia os cabelos grisalhos do Sr. Carlos, enquanto filmo a nossa entrada no oceano. Os enquadramentos da minha máquina variam entre o oblíquo e o tremelico. Só com o barco no ralenti  é que consigo captar imagens com qualidade.

À medida que nos afastamos da terra, passamos por várias traineiras perseguidas por gaivotas que aparecem para comer peixe de borla e já pescado. Passamos por bóias das redes de pesca, largadas para depois serem recolhidas.
“Os turistas americanos quando vêem Póvoa de Varzim a partir daqui, chamam-lhe 'Little Manhattan'“, diz-me o Sr. Carlos. Mas a sugestão de simetria e repetição de prédios, pintados em vários tons, só lembra Manhattan numa escala de um para mil. As múltiplas janelas e varandas bem definidas, compridas e repetidas, remetem-nos para estruturas de lego. Pela sensação de equilíbrio que me provoca, é a paisagem cimentada mais harmoniosa que vi até agora a partir do mar. Mas vista de longe.

Em cima de um rochedo envolto de mar, especados a olhar para a cidade, estão meia dúzia de corvos-marinhos-de-faces-brancas. Têm penas pretas, bico e cauda compridos, e fazem razias à água com as asas esticadas para as secar. “Têm aparecido muitos por aqui”.

Vejo o casino da Póvoa, uma antiga fábrica de conservas e passo por Caxinas. Peço para abrandar a velocidade. Fotografo a igreja em forma de navio que abençoa os caxineiros. A grua ao lado é da construção de um prédio habitacional que tem causado forte contestação. Os habitantes opõem-se a que o condomínio fique a uma tão curta distância da igreja.

Sem me aperceber, chego a Vila do Conde. Passo pelo forte de São João, pela capela da Guia e vejo ao longe o Convento de Santa Clara a ser reabilitado.

Antero de Quental, Eça de Queirós, José Régio, Ruy Belo e tantos outros respiraram este ar oceânico, que lhes fecundou a ponta das canetas, para que escrevessem as mais belas palavras da literatura portuguesa.