Chuck Blazer tomou as devidas precauções para apagar o rasto do dinheiro. Era a terceira tranche que recebia por ter votado na África do Sul para país organizador do Mundial de 2010, enquanto membro do Comité Executivo da FIFA, e não queria deixar vestígios do suborno. O cheque fora-lhe enviado pelo amigo de Jack Warner, outro membro do Comité Executivo da FIFA e um dos nove dirigentes acusados na semana passada, pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos, de usarem o seu poder no futebol para fazerem fortuna pessoal.
Ex-ministro em Trinidad e Tobago, Warner presidiu de 1990 a 2011 à Confederação de Futebol da América do Norte, Central e Caraíbas (CONCACAF), equivalente à UEFA na Europa. Chuck Blazer foi o seu braço-direito desde o primeiro dia, no cargo de secretário-geral. Em 2004, antes da votação para definir o organizador do Mundial de 2010, deslocaram-se a Marrocos, um dos países na corrida. E um milhão de dólares não chegou para comprar o voto de Warner. A África do Sul tinha avançado com uma oferta mais tentadora: dez milhões em troca dos votos dos três membros da CONCACAF com assento no Comité Executivo da FIFA – o órgão de 24 pessoas que decide onde se jogam os Mundiais.
Blazer era um deles e aceitou receber um milhão de dólares, do bolo de dez milhões, para dar o seu voto à África do Sul. O cheque da terceira tranche recebeu-o na sua residência no 49.º andar da Trump Tower, cujo 17.º piso era totalmente ocupado pela sede da CONCACAF. Ali enriqueceu com o futebol, elevador acima e elevador abaixo, à base de crimes de extorsão, fraude, lavagem de dinheiro e evasão fiscal.
Este é um dos casos descritos pela Justiça dos EUA para sustentar as acusações de corrupção contra altos dirigentes da FIFA e resulta de uma investigação do FBI que só foi possível graças à colaboração do 'co-conspirador número um'. Assim é designado, no documento formal da acusação, o homem que em Novembro de 2011 aceitou passar a colaborar com as autoridades para evitar estar agora no banco dos réus: Chuck Blazer.
O secretário-geral da CONCACAF estava de saída do cargo e, em segredo, começou a fornecer informações. O seu telefone ficou sob escuta, o email passou a ser vigiado e por vezes actuou como agente infiltrado, a pedido do FBI. Segundo o New York Daily News, durante os Jogos Olímpicos de 2012, munido de um microfone escondido no porta-chaves, gravou reuniões em Londres com elementos das candidaturas da Rússia, da Austrália e dos Estados Unidos à organização dos Mundiais de 2018 e 2022.
Ao contrário do agente secreto tradicional, este 007 dos tempos modernos dá nas vistas. Com 200 quilos de peso, faz-se muitas vezes transportar numa scooter de mobilidade, uma espécie de carrinho eléctrico para idosos; as gravatas que usa não primam propriamente pela discrição; e a barba é farta ao ponto de criar a dúvida sobre onde começa o cabelo.
Não foi preciso disfarçar-se – se é que era possível – nem convinha. Na esfera dos negócios da bola, toda a gente o conhecia. Blazer é um dos impulsionadores do soccer na América, coroado com a organização do Mundial de 1994, mas cujo sucesso se reflecte hoje, por exemplo, no facto de se ter tornado o segundo desporto mais praticado no país, só atrás do basquetebol. No seu blogue, entre fotografias dos disfarces de Halloween, tem publicadas imagens com Nelson Mandela, Hillary Clinton, Franz Beckenbauer, Michel Platini ou Pelé. Em 2010, meses antes de ter anunciado o apoio à candidatura da Rússia ao Mundial de 2018, visitou Vladimir Putin no Kremlin e conta que o presidente russo lhe esticou a mão para um cumprimento 'dá cá mais cinco'. Bastou concordar que o seu visual fazia lembrar Karl Marx.
Chuck era um vendedor – de pins com smiles amarelos, um grande sucesso nos states, a cinzeiros e toalhas de praia – quando o filho começou a jogar futebol, em meados dos anos 70. Envolveu-se e chegou a ser treinador, mas o que o entusiasmava era a logística da equipa e a angariação de patrocinadores. Entrou numa associação de futebol regional em Nova Iorque e, em 1984, saltou para vice-presidente da Federação dos EUA. No jantar prévio à eleição apostou numa acção de marketing ao surgir ao lado de Pelé (que cobrava só por aparecer) e lançou-se no circuito.
Por inerência, Chuck Blazer passou a lidar com dirigentes da CONCACAF e conheceu Jack Warner, então um dos vice-presidentes. Os contactos entre os dois terão arrefecido nos anos seguintes, quando o norte-americano perdeu a reeleição em 1986 e avançou para a criação de uma Liga de 10 clubes que só resistiu duas épocas. Estava já à frente de um desses clubes, em Miami, depois de ter renunciado ao papel de organizador da prova, quando bateu com a porta e desapareceu de cena. Nem um ano depois voltaria como secretário-geral da CONCACAF.
Desempregado, tinha viajado até Trinidad e Tobago para desafiar Warner a avançar para a presidência. Liderou a campanha e, numa das primeiras medidas pós-eleitorais, mudou a sede da Guatemala para Manhattan. Aproveitou e instalou-se também ele na Trump Tower, abrindo a porta a misturas entre vida pessoal e profissional.
Chuck tinha um acordo com a CONCACAF que, além do salário mensal, garantia-lhe 10% de todos os contratos da organização. Se cediam direitos televisivos, lucrava. Se arranjavam patrocínios, lucrava. Se vendiam bilhetes, lucrava. O mais pequeno direito comercial alienado implicava o pagamento da comissão ao secretário-geral. Cada bifana vendida nos estádios engordava os cofres de Blazer. E ele soube alimentar a 'vaca' como ninguém: ao criar a Gold Cup, competição à imagem do Europeu de selecções para os países da CONCACAF, e a Liga dos Campeões para os clubes, as receitas da confederação dispararam.
Às tantas, muito do dinheiro que tinha a receber já nem entrava nas suas contas encobertas por empresas fictícias em paraísos fiscais. Para fintar os impostos, pagava as despesas pessoais directamente com o cartão de crédito da CONCACAF e depois, supostamente, abatia ao que lhe era devido. Assim comprou apartamentos nas Bahamas e em Miami e um jipe Hummer, mas o método também servia para fazer face a gastos mais correntes: a empregada de limpeza recebeu 81 mil dólares da conta da CONCACAF.
São conclusões de uma investigação incompleta levada a cabo pela confederação de futebol já depois da renúncia de Chuck Blazer, no final de 2011. Incompleta porque já não havia computadores no escritório do secretário-geral quando os investigadores foram chamados, além de que as informações possivelmente mais comprometedoras estariam guardadas na sua residência, uns andares acima, onde chegou a assinar papelada em roupa interior quando os funcionários da CONCACAF lhe tocavam à campainha para despachar serviço.
Foi por essa altura que um agente do FBI e outro do IRS o abordaram na rua, enquanto se deslocava na scooter adaptada. Chuck tinha denunciado Jack Warner à FIFA uns meses antes, depois de ter sido confrontado com provas de uma tentativa de suborno por parte do seu superior a membros de federações das Caraíbas. A cada um o presidente da CONCACAF tinha oferecido um envelope com 40 mil dólares para votarem em Mohammed bin Hammam, do Qatar, e não em Joseph Blatter nas eleições de 2011 para a presidência da FIFA. Blazer tinha duas hipóteses: ou enviava a denúncia para a sede do organismo máximo do futebol mundial ou seria visto como cúmplice quando o caso viesse a público. Escolheu a primeira opção e deixou cair Warner, que abdicou de todos os cargos.
Os dois agentes estavam a par de tudo quando interpelaram Chuck Blazer nas ruas de Manhattan. «Queres sair daqui algemado ou vais cooperar?», terão perguntado, segundo o New York Daily News. Explicaram-lhe que incorria em muitos anos de prisão e que a pena poderia tornar-se mais leve se colaborasse com a justiça. Rendeu-se. Dois anos mais tarde, em Novembro de 2013, declarou-se culpado e espera agora, aos 70 anos, livrar-se da cadeia por ter ajudado a desvendar como funcionaram os negócios da FIFA nos últimos 25 anos. Nem Blatter resistiu à força das evidências e, na terça-feira, demitiu-se.
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