Das tripas, numeração

O Porto foi invadido por mais de mil matemáticos. Debates intensos sobre os problemas, conjecturas, teoremas e quejandos desta disciplina tornaram a Invicta uma espécie de capital mundial dos números. A iniciativa terminou ontem. Hoje, destacamos três dos intervenientes nesta maratona.

Quando somos pequenos, para nos conterem, contam-nos histórias do bicho-papão. Quando crescemos, o papão deixa de ser um monstro, uma massa gelatinosa terrível e indistinta só para nos fazer medo, e os números passam a ocupar o seu lugar. A matemática é o bicho-papão da era da ciência e da tecnologia. Verdade? Nem pensar. Se não, por que terão vindo ao Porto mil bichos-papões para uma estadia de quatro dias?

A Invicta foi escolhida como palco de um encontro internacional promovido por três Sociedades de Matemática: a americana, a europeia e a portuguesa. Foram muitos os pesos-pesados da disciplina que discutiram questões absolutamente transcendentais e, ao mesmo tempo, incumbidos de superar os medos pelos bichos-papões. Uma das sessões mais aguardadas foi a apresentada pelo britânico Marcus du Sautoy, que é quase uma pop star da disciplina nos tempos que correm. Du Sautoy assina textos de divulgação, dá outra cor aos números em imensas – e bastante divertidas – TED Talks e é 'personalidade da TV'. É dele uma famosa História da Matemática, um sucesso no YouTube e recentemente retirada após uma reclamação de direitos de autor. 

Uma alternativa possível é assistir à sua muito popular explicação sobre o problema de Monty Hall ( saber mais aqui )

A sessão, aberta ao público, lançou o matemático na Casa da Música, acompanhado de excertos musicais interpretados pela Orquestra Clássica da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. A proximidade do público e a sedução dos números são um 'must' para o britânico. Em Janeiro, Du Sautoy tinha escrito, de resto, no Guardian, que “os matemáticos são contadores de histórias. As nossas personagens são números e geometrias. As nossas narrativas são as provas que criamos sobre estas personagens”.

Se podemos adoçar os números com música e analogias à literatura, por que não também com jogos? Outro dos pesos-pesados presentes no Porto fez, de certo modo, um regresso a casa. Foi lá, na universidade local, que o carioca Marcelo Viana fez a licenciatura. Hoje com 53 anos, é um dos mais conhecidos matemáticos brasileiros, com forte carreira internacional e com o gosto pela divulgação, tal como o colega britânico.

À conversa com a revista Tabu (que integra a edição em papel do SOL), por email, Viana confessa que é difícil superar o medo dos números: “A Matemática tem um problema de percepção equivocada em praticamente todos os países”, escreve. “Mas não todos e as poucas excepções (países escandinavos, alguns países asiáticos) caracterizam-se por investirem esforços e recursos na promoção e divulgação da Matemática na sociedade. Também, e não será coincidência, são os países com melhores índices de desenvolvimento humano, social e económico”.

A matemática anda de mãos dadas com o desenvolvimento. É esta a ideia forte. Viana é um globetrotter da disciplina, que definiu o seu destino logo aos 15 anos, quando disse à mãe que queria, especificamente, ser professor universitário desta disciplina. Recebeu o Prémio da Universidade de Coimbra em 2007, entre outros prémios internacionais, que o distinguem tanto quanto artífice dos números quanto da divulgação.

Baseado no Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (IMPA) do Rio de Janeiro, deu aulas em vários países. E foi com surpresa que constatou que em duas universidades, uma no Brasil e outra na China, não tinham consciência de que se podia fazer investigação em matemática e que esta ciência “não está toda pronta”. “Não sei se me acreditaram…”.

A matemática lusófona teve o seu ponto alto no ano passado, com a atribuição da medalha Fields (uma espécie de Nobel da disciplina) ao brasileiro Artur Ávila, também aluno – e professor – no IMPA. Mas o prémio poderia ter outros dois candidatos, o também brasileiro Fernando Marques e o português André Arroja Neves, que desvendaram, em 2012, a chamada Conjectura de Willmore, um problema então com mais de 40 anos.

Neves esteve também no Porto para este encontro e salientava, em declarações à Tabu, depois de publicar os resultados deste trabalho, que a conjectura tinha aplicações que iam da geometria pura e dura à investigação médica. Tal como outros cérebros em fuga do território nacional, André Neves saiu e está há alguns anos a leccionar em Inglaterra, no Imperial College de Londres, conhecido como uma espécie de 'viveiro' de prémios Nobel.

Não é para todos… Mas a ideia de que a matemática é só para alguns é peregrina. Marcelo Viana faz a comparação que se impõe, sendo ele da pátria do futebol: “Podemos todos ser jogadores profissionais de futebol ou isso está reservado aos génios como o Neymar, o Cristiano Ronaldo ou o Messi?”. Afinal, “claro que não podemos estar todos nesse nível, mas a grande maioria de nós pode ser futebolista, jogar com mais ou menos à vontade e tirar proveito disso, divertir-se com isso. No caso da Matemática o proveito não é só diversão, é também uma melhor realização como pessoa e como cidadão”.

ricardo.nabais@sol.pt