Mas tendo em conta que a minha coluna aqui data do final de 2013, como é que chegámos a este extremo tão depressa?
Muito se tem falado acerca do turismo massificado, muito temos ouvido acerca do aumento do número de turistas a visitar Portugal e muito temos ouvido acerca de como o turismo estimula a economia.
Tudo verdade.
Porém começamos agora a ouvir falar do êxodo dos centros históricos e do assédio que os moradores dos centros históricos sofrem por parte de agentes imobiliários ferozes, desejosos de adquirir propriedade de altíssimo rendimento. Também temos ouvido muito esse palavrão que é a gentrificação. Também temos ouvido falar da AirBnB. E também temos sentido muitíssimo os efeitos do turismo no nosso quotidiano, quando, por exemplo, desejamos deslocar-nos num transporte público – cuja frequência foi altamente reduzida aquando das necessidades da troika – e há uma fila interminável de gente que não costumava estar ali a ocupar o nosso lugar e a atrasar a nossa chegada ao destino.
Esta coisa do turismo, em Lisboa, é acima de tudo uma questão de volume: o centro histórico não comporta tanta gente de uma assentada só, porque não tem condições para que essa quantidade de gente se desloque: basta olhar para a largura dos passeios e pensar meio segundo.
A pouco e pouco, o centro histórico da cidade parece que deixa de pertencer às pessoas e passa a pertencer a uma massa informe de gente que olha para tudo como se fosse ficção e que trata a nossa realidade de forma paternalista, contemplativa, e condescendente.
A princípio até nos pareceu bem esta curiosidade, soube muito bem no bolso, mas agora a coisa não está assim tão divertida, porque interfere de forma brutal com o nosso rame rame, com a nossa vidinha.
Admitamos que dá mais gosto ver assim as ruas cheias de gente.
Mas tenhamos também a honestidade de admitir que é um bocado injusto que um veículo anterior ao ano não sei qual não possa circular do Marquês para baixo e que possam circular centenas de tuk-tuks pela cidade fora. Também é um bocado feio uma pessoa querer comprar uma garrafa de água e ter de pagar 0,6% do ordenado mínimo pela dita cuja. Já para não falar das hordas de gente que andam pela estrada e que não se desviam quando um carro quer passar, porque para essas pessoas, de nacionalidade estrangeira, o carro é que está ali mal, porque o solo que pisam é o de uma espécie de Disneyland ora medieval, ora manuelina, ora barroca, ora republicana, ora totalitária, ora pós-revolução, ora very typical. Os turistas adoram esta ideia de uma Lisboa que serve para tudo e que está ao alcance de todos por dois tostões.
De tanta generosidade e com a fama de pobre e necessitado que Portugal tem lá por fora, os turistas sentem-se no direito de usurpar o território e de o povoar como uma praga que destrói tudo à sua passagem, deixando apenas o mísero rasto do seu cartão de crédito. Já não é a primeira vez que ouço um turista dizer que nos faz muita falta a sua presença, porque estamos na fossa e eles são a nossa salvação. Em parte concordo ao contrário.
De tanto que Lisboa se quer mostrar, apaga-se em si mesma e perde a sua identidade.
A pouco e pouco a cidade que conhecemos irá desaparecer.
Num país depauperado e numa cidade saturada de tanta folia, o êxodo torna-se inevitável. Terraplanagem para o parque temático, concluída. A edificação do dito cujo já vai a meio, com não-espaços já abertos, povoados apenas por funcionários. Planeia-se uma delimitação do perímetro em vidro temperado. E quando a festa acabar e se lançarem os foguetes, digam-me quem é o segurança que vem fechar a porta de vidro? Que é para lhe dar a acreditação e não lhe barrarem a entrada para o turno vazio.
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