Constantino, o nosso grego intranquilo

Comecemos pelo fim. Um relatório, mais um, do Observatório Português dos Sistemas de Saúde dava conta, esta semana, de algo que já não é notícia: a degradação do Serviço Nacional de Saúde acentuou-se com a crise e o programa de ajustamento a que estivemos sujeitos.

Já antes, outros documentos provavam esse declínio. Um deles, feito por um grupo nacional que estabeleceu uma rede com colegas da Grécia, da Espanha e da Irlanda descrevia inúmeros problemas. Divulgado em finais do ano passado, levava, entre outras, a assinatura de um dos grandes conhecedores da saúde pública em Portugal, Constantino Sakellarides. 

Voltemos então ao início. Quem é aquele senhor alto, que a espaços vamos vendo na televisão a falar destas importantes matérias de saúde pública? O nome, de ressonâncias gregas, indica exactamente a origem em mosaico do médico. Português de nacionalidade, moçambicano de nascimento, grego de origem. Desde cedo  abraçou as causas públicas da saúde, até chegar a director para as Políticas e Serviços de Saúde da Organização Mundial de Saúde (OMS)/Europa, em Copenhaga, de 1991 a 1995, entre outros cargos sonantes, como o de director-geral de saúde (entre 1997 e 1999).

Curiosamente, acabou por ver-se grego quando conheceu a pátria do pai. A mãe, também grega, era filha da diáspora, tinha nascido no Cairo. Foi a Atenas pela primeira vez aos 40 anos, ao serviço da OMS. Ia para dar apoio ao ministério da saúde local para o desenvolvimento de um SNS. Quando lhe perguntaram pela primeira impressão daquela pátria distante e tão próxima, confessou o espanto: “Eu disse 'é muito estranho. Cheguei, pus as malas no hotel e fui a um café. O café estava cheio de gente, toda a gente falava grego e eu não conhecia ninguém'“, ri-se. O grego era a infância, foi a primeira língua, a que se falava em casa e no café do pai – cuja frequência incluía a comunidade grega em Moçambique – na estação dos caminhos-de-ferro da então Lourenço Marques. 

Ainda hoje se impressiona com o trajecto dos ascendentes. “São histórias de emigrantes. São interessantes, difíceis. Naquela altura uma pessoa saía do Cairo para Moçambique de barco, pelo Canal do Suez, descia por ali abaixo. As pessoas mandavam uma carta a dizer que estavam bem e a carta subia por ali acima e eram meses, às vezes anos de separação, de angústia, de interrogação, de desencontros”.

Orgulho grego 

As idas à Grécia multiplicaram-se depois dessa estreia. Quando estava a realizar o trabalho sobre a situação da saúde pública portuguesa durante a crise, teve reuniões com colegas locais. Já lá tinha ido noutras ocasiões, em conferências. Ao chegar, tinha de ajustar ouvido e vocabulário para poder falar com as pessoas em grego. 
Mas, para os encontros médicos, não conseguia, evidentemente, expor na língua nativa. Sentiu então – não seria a última vez – o tradicional orgulho grego. No jornal, no dia seguinte, havia um pequeno artigo sobre a conferência. A dada altura, dizia-se no texto, recorda Sakellarides, entre risos: “'Fulano de tal, nome grego mas falou em inglês'. Aquilo era visto com alguma reserva…”. 

Agora a crise, tanto no país de origem dos pais quanto no seu, assusta-o. Apesar das diferenças económicas entre Portugal e a Grécia e, sobretudo, culturais. Entre os helénicos, explica Sakellarides, impera uma espécie de “cultura de bazar” que “enfraquece as instituições” e torna as soluções mais difíceis. “Esta cultura tem aspectos simpáticos mas é um desastre em termos institucionais”. No entanto, frisa o médico, a crise foi desencadeada por um fenómeno exterior aos gregos e os programas de ajustamento eram, na verdade, desajustados: “Foi puramente soberanismo financeiro. Impuseram programas aos países que não têm nada a ver com a sua cultura e com a sua economia. E impuseram o mesmo programa à Grécia, a Portugal e à Irlanda, que são países muito diferentes”.

Por isso, os relatórios sobre o estado da saúde trazem à baila a falta de debate sobre este assunto essencial. Para Constantino Sakellarides, a questão é clara e pouco tem sido debatida, não só em Portugal ou nos países onde as troikas semearam cortes, mas noutros em que a austeridade também é a rainha das políticas públicas: “Quando tivemos o plano de ajustamento, no seu desenho inicial, era responsável fazer a seguinte pergunta: qual é o impacto que esse plano tem sobre a saúde?”. Porque a saúde, para o especialista, está na linha da frente do embate que as populações sofrem com os cortes. Ninguém pareceu importar-se: “Ao fazer essa pergunta, os governos deviam equipar-se melhor para conseguir menorizar os efeitos, monitorizar melhor e também renegociar”. 

O relatório levou o nome genérico O Impacto da Crise Financeira no Sistema de Saúde e na Saúde em Portugal. O grupo que Sakellarides integrou começou a recolher dados em Dezembro de 2012. À previsão de um ano para os divulgar, somou-se mais um ano. Os outros grupos da rede dedicaram-se às situações dos países 'intervencionados', a Irlanda e a Grécia, e ainda à Espanha. A Organização Mundial de Saúde (OMS) teve, entretanto, a ideia de fazer um trabalho semelhante e utilizou os dados da rede, publicando relatórios sobre os quatro países e juntando-lhes os estados bálticos (Letónia, Lituânia e Estónia). 

Mas a demora teve uma razão, queixa-se Sakellarides. As pressões para que os relatórios não fossem divulgados foram muitas. O nosso só veria a luz do dia em finais de 2014. “A Espanha nem sequer permitiu que publicassem o seu”. 

A ideia, segundo o especialista, é que a saúde desfaz o mito da eficácia dos programas de ajustamento. “O atraso deveu-se fundamentalmente às pressões dos governos. Mas o problema fundamental é que o programa de ajustamento tinha sucesso obrigatório. O sucesso definiu-se por implementar o programa, não pelos resultados”. 
A situação actual do SNS, que vai sendo falada a espaços nos media, parece devastadora. O sistema perdeu, “em termos operacionais, cerca de um milhão de euros, à volta de 15%, num serviço que tinha de ir aumentando a sua capacidade em vez de diminui-la”.  

Há ainda a debandada de pessoal: “Médicos e enfermeiros, que têm um papel fundamental no enquadramento do hospital e no do ensino dos jovens, passam para o serviço privado. Os mais jovens saem do país. A diminuição de salário no pessoal médico esteve entre 15 e 20%”. Daí que seja preciso tratar da saúde à saúde: “A Europa está a dar passos muito tímidos para sair desta hierarquia: primeiro as finanças, depois a economia, depois os aspectos sociais. A saúde é um argumento forte para acelerar esse reequilíbrio. Mas tem de ser posto sobre a mesa”. 

ricardo.nabais@sol.pt