Quando ia começar esta crónica, o clima à volta do caso fazia prever, pela primeira vez em longuíssimas semanas, um desfecho aparentemente optimista, como indiciavam os reflexos pavlovianos dos mercados, com subidas acentuadas nas bolsas e as taxas de juro em lume mais brando.
Mas tudo mudou num ápice: apesar da atmosfera favorável em que as derradeiras propostas – e flagrantes cedências – gregas foram acolhidas pela Comissão Europeia e o Eurogrupo, bastou a reacção desagradada do FMI para voltar a impor-se a voz austeritária da troika que o Governo de Atenas julgava ter já deixado para trás.
Afinal, é o FMI quem manda mais do que os outros, opondo-se a um possível concerto institucional europeu – ou terá simplesmente assumido o clássico papel de 'polícia mau', permitindo aos restantes fazer de 'polícias bons'e lavar as mãos como Pilatos?
O mais provável será, talvez, que nenhum saiba já que papel efectivamente desempenha no clima de paranóia que se instalou e que todos tenham perdido o pé no teatro das animosidades entre alguns protagonistas (é o caso de Tsipras, primeiro-ministro grego, e Lagarde, directora-geral do FMI). Animosidades que, como já escrevi, se sobrepõem ao conteúdo das propostas e contrapostas do Governo de Atenas e das instituições troikistas.
Evidentemente, podia ter escolhido outro assunto menos volátil para tema desta crónica e esperar pelo fim do folhetim. Só que este parece mesmo um folhetim sem fim à vista, embora a data provisória da sua conclusão seja 30 de Junho, quando a Grécia tiver de reembolsar 1,6 mil milhões de euros ao FMI e, não o fazendo, entrar em default (para o qual se concebem diferentes cenários, mas todos eles conduzindo às tais “águas desconhecidas” de que falou Mario Draghi).
Ninguém sabe o que vai acontecer nem tem a noção precisa das suas consequências para a Grécia, a Zona Euro e a União Europeia. Ainda assim, não falta quem se atreva a dar palpites disparatados sobre essas consequências, menosprezando olimpicamente os aspectos políticos, económicos, sociais e geoestratégicos que elas envolvem.
A partir de agora, a evolução dos acontecimentos ameaça deixar de fazer sentido, dentro de prazos e condições sustentáveis para as partes em conflito. E isso constitui um tema de preocupação mais grave do que episódios folclóricos da nossa política doméstica – até porque seremos inevitavelmente atingidos pelos efeitos directos ou colaterais da crise grega.
Mesmo que ainda se venha a encontrar uma qualquer saída de emergência, não existe um ponto de retorno à normalidade das instituições europeias tal como elas hoje funcionam.
A Grécia apenas “mascara a verdadeira crise da Europa”, como dizia há dias o constitucionalista americano Bruce Ackerman numa entrevista ao Le Monde. “A verdadeira questão é outra: há uma crise de legitimidade política na Europa”, cuja arquitectura foi construída sobre tratados e compromissos a que faltou essa legitimidade (como o projecto de Constituição de 2005, rejeitado em referendo por franceses e holandeses, e o tratado de Lisboa, “adoptado em 2007 sem passar pelo voto por sufrágio universal, excepto na Irlanda”).
Os gregos têm estado divididos entre uma maioria favorável à manutenção no euro e outra maioria que se confunde com a primeira e apoia o Governo do Syriza, eleito com um programa contra a austeridade. Uma contradição insanável, afinal?
Agora, colocado entre a espada e a parede, o Syriza atingiu o limite possível das concessões às exigências europeias e do FMI, arriscando perder a legitimidade conquistada nas urnas – tal como têm mostrado os protestos populares contra as últimas propostas do Executivo de Atenas.
Ora, as instâncias credoras insistem em considerar insuficientes essas propostas e oferecem como única alternativa o agravamento de uma política recessiva que, além de bloquear a recuperação do país, o impedirá de honrar, por mais sacrifícios que faça, o pagamento da dívida. Não é apenas o Syriza que se verá impedido de governar. É a Grécia que se tornará literalmente ingovernável.
As assimetrias económicas e políticas da Europa projectam-se na Grécia como caso mais revelador – e extremo – de um projecto à beira da implosão. É um cenário de instabilidade impróprio para cardíacos.
Crónica originalmente publicada na edição em papel do SOL de 26/06/2015