A tradição já não é o que era. Pelo menos assim parece no Casa Portuguesa do Pastel de Bacalhau que abriu portas no passado dia 4 de Maio, na Rua Augusta, em Lisboa. Em pleno epicentro turístico da capital, e com a gastronomia portuguesa a ecoar um pouco por todo o lado, não demorou até as filas se começarem a formar para provar um dos mais tradicional pastéis portugueses. Só que neste caso, além da receita normal estava à venda (e continua) uma variação com queijo da serra. As filas aparentemente não se importaram com esse desvio da tradição, principalmente numa cidade em plenas festas antoninas. Até que Maria de Lourdes Modesto, que em 1982 publicou a (sua) receita de pastel de bacalhau no livro Cozinha Tradicional Portuguesa, (ver caixa), considerou este desvio «uma verdadeira obscenidade (…). Na Cultura, não há ninguém com papilas saudáveis, bom gosto e que saiba que o pastel de bacalhau é uma das jóias mais perfeitas e mais queridas da nossa gastronomia popular?». E pronto. Estava instalada a polémica. Os portugueses rumaram ao centro da polémica para testar com as ditas papilas gustativas se era caso para tanto, já os estrangeiros, longe destes diferendos, encontraram na Rua Augusta mais um local para provar um produto nacional por 3,45€ euros que dá direito a 120g de massa de bacalhau com 20g de queijo da serra.
Sérgio Carvalho, director do Museu da Cerveja, do Museu do Pão e agora deste espaço, e Pedro Dias, director geral do Museu da Cerveja e também desta casa, esclarecem que o espaço que agora abriram não resulta de um acto extemporâneo mas sim de um ano e meio a vender pastéis de bacalhau com queijo da serra no Museu da Cerveja, no Terreiro do Paço, «sem ninguém se preocupar com isso. Só quando abrimos aqui é que parece que caiu o Carmo e a Trindade. Estamos a falar que num ano foram vendidos 300 mil pastéis». De resto, explicam, basearam-se na receita de Carlos Bento da Maia que, em 1904, publicou o Tratado Completo de Cozinha e de Copa (ver caixa) «que acaba por relatar uma receita que, pensa-se, terá sido a primeira escrita do pastel de bacalhau». E assim se justifica por que aparece a data de 1904 numa casa inaugurada em 2015.
No entanto, o gastrónomo Virgílio Gomes explica no seu blogue dedicado à história da gastronomia, que essa talvez não tenha sido a primeira receita e até que a inclusão de queijo, não é uma inovação tão recente como se possa imaginar. «Em 1876 no livro Arte de Cozinha de João da Mata aparecem-nos duas receitas identificadoras do pastel de bacalhau mais parecido com os que hoje conhecemos: 'Pastelinhos fritos de bacalhau à Holandeza' e 'Pastelinhos de bacalhau'. Os primeiros são muito semelhantes aos actuais com a excepção de se lhes juntar naquele tempo queijo ralado. Curiosamente a primeira receita de bacalhau em forma de 'bolinho' ou 'pastel' é de 1841 no livro Arte do Cozinheiro e do Copeiro do Visconde de Vilarinho de S. Romão». De resto a história da receita, crê-se que tem origem no Minho com mais ou menos variações nas proporções de batata e bacalhau.
Com 300 mil pastéis de bacalhau com queijo da serra vendidos num ano, e com uma produção diária que chega aos 1500, sendo que apenas 10% dos visitantes prefere os 'tradicionais', Pedro e Sérgio não pretendem alongar a polémica. «Tirando às vezes o tom que ressalta de alguma adjectivação, estamos abertos a críticas e a sugestões. Já ouvimos outras palavras do género de 'obscenidade', 'vendilhões' e por aí fora mas sobre isso não nos pronunciamos. Os adjectivos ficam para quem os diz. Acho muito bem que as pessoas estejam atentas sobre aquilo que sai sobre a cultura portuguesa». E porque se preocupam com a cultura portuguesa, e também porque Sérgio Carvalho é professor de História de Arte, a Casa Portuguesa do Pastel de Bacalhau é também uma montra de arte. Há quadros de Malhoa, Júlio Pomar, Graça Morais e Rui Silva originais fruto de uma parceria com uma galeria da capital. Depois de apreciarem a exposição gratuita encontramos Elaine e Vanderlei, um casal de brasileiros em visita a Portugal, a braços com o pastel da discórdia. Quando lhes perguntamos o que acham, respondem: «É muito bom, mas aqui não põem pimenta? Nem tabasco? Fica muito bem também…».
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