Creches: Big Brother filma bebés

Na creche Cosme e Damião, os pais recebem uma password para poderem ver à distância e em directo no seu computador os filhos a brincar na sala. Na Tutor T, as câmaras também filmam o que se passa nas salas de actividades, no refeitório e nos recreios, mas as imagens não saem para o exterior:…

O objectivo, alegam estas creches da região de Lisboa, é garantir a segurança das crianças e permitir aos pais acompanhar de perto o desenvolvimento dos filhos, principalmente na fase de adaptação e nas idades mais tenras, alegam as creches. Mas a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) garante ao SOL que essas câmaras estão ilegais porque as crianças e os funcionários têm direito à sua privacidade e não podem ser vigiados. Mesmo que dêem autorização.

Os dois casos referidos não são únicos. Segundo apurou o SOL, há mais creches onde estas câmaras estão colocadas ilegalmente em salas, refeitórios e recreios, embora seja difícil aceder a essa informação porque não é disponibilizada nos seus sites. A CNPD já foi chamada a várias creches, na sequência de denúncias, e obrigou-as a desligar os sistemas de vigilância. Sujeitam-se ainda a multas que podem chegar aos 30 mil euros.

A lei obriga as entidades que querem colocar sistemas de videovigilância a solicitarem autorização à CNPD, onde têm de especificar o local das câmaras. Desde 2004 – segunda a pesquisa feita pelo SOL no site da comissão – houve 34 pedidos. Entre estes, cinco  solicitavam a instalação de câmaras em salas de actividades, zonas de recreio, refeitórios e acessos ao exterior. Mas todos os pedidos que iam para além da instalação de câmaras nos acessos e estacionamentos foram recusados pela Comissão de Dados.

Todas as autorizações concedidas às creches foram limitadas a câmaras nos locais exteriores, porque não incidiam directamente sobre as crianças e adultos e porque cumpriam o propósito de garantir a segurança de pessoas e bens. Os pareceres terminam todos com a mesma advertência: “Apenas a recolha de imagens nos locais declarados está abrangida pela presente autorização, não podendo, em circunstância alguma, serem recolhidas imagens de acesso ou interior de instalações sanitárias, locais de descanso das crianças, salas de actividades, recreios e cozinhas”. 

Instituições desobedecem ao parecer da Comissão

Mas há creches que não respeitam este parecer. No caso da Tutor T, no Parque das Nações, o pedido de autorização foi feito em 2005 e previa a instalação de 20 câmaras em 10 salas, duas no refeitório, duas no corredor, duas no recreio interior, uma na entrada e outra no exterior. Em causa estavam questões de “segurança” e de “observação e supervisão de educadores e crianças”, segundo afirmou a creche. 

A resposta da Comissão Nacional de Protecção de Dados, emitida em 2005, foi negativa e a empresa contestou, alegando que o projecto tinha sido alterado: “O sistema de vídeo capta apenas imagens e já não o som; não se procede à gravação de imagens e os pais não têm acesso à distância”, lê-se no documento a que o SOL teve acesso. O advogado da Tutor T argumentava ainda que a legislação laboral não se opunha ao pedido de autorização, “uma vez que os trabalhadores foram informados da utilização dos meios de vigilância e deram os seus consentimentos por escrito”.

Mas a CNPD manteve a sua posição, considerando que o sistema “afectaria o direito à intimidade das crianças” e que, ao tomar consciência de que estavam a ser vigiadas pelos pais, “este facto poderia criar nelas habituações ou a aceitação natural da sujeição a tal modo de controlo, na sua vida futura”. A autorização foi dada só para câmaras exteriores.

Teresa Prazeres, directora da creche, explica ao SOL que o sistema de videovigilância se insere numa “filosofia de transparência que permite aos pais verem o que se passa nas salas”. A responsável diz ainda que as imagens não são emitidas no exterior mas num videohall na escola, onde “os pais podem ver sem serem vistos”. Diz ainda que todos os pais e funcionários sabem que são filmados. Mas na prática, alerta a CNPD ao SOL, “um pai não está a ver só a sua criança: vê todas”.

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Pais desconhecem a lei

Na Cosme e Damião, em Rio de Mouro, o procedimento foi semelhante. A creche e jardim de infância pediu autorização à CNPD em 2014 para a instalação de uma câmara no exterior. Apesar das advertências da Comissão, foram colocadas seis câmaras nas salas: duas nos berçários, duas  nas turmas dos bebés de 24 meses e duas nos espaços onde se encontram as crianças com três anos.

No site da creche, há um link com a informação: “aqui pode acompanhar o dia-a-dia do seu filho, mediante código de acesso disponibilizado pela Direcção da Creche Cosme e Damião”.

Segundo contou ao SOL a mãe de um ex-aluno, o sistema de videovigilância está activo pelo menos desde 2009. “Achava piada e no primeiro mês ia diariamente ao site vê-lo. Mas depois tornou-se banal e deixei de o fazer”, recorda, acrescentando que as imagens tinham pouca qualidade e era difícil perceber o que se passava. Ana diz que não escolheu a escola com base nesse requisito – só soube da sua existência na primeira reunião de pais quando foram distribuídas as passwords – e confessa que não se sentia muito mais segura por isso. “Sempre confiei na escola e tenho óptima opinião do que lá se passa. Mas hoje, se soubesse que era ilegal, teria feito perguntas. Confesso que nem pensei nos perigos”. Por exemplo: as imagens serem visionadas por pessoas mal intencionadas (até outros pais) ou pirateadas e difundidas na internet.

Actualmente a situação é diferente: pais e funcionários assinam um documento onde tomam conhecimento do sistema e se comprometem a não falar sobre ele. Foi essa a informação transmitida ao SOL pela escola que não quis prestar esclarecimentos por escrito.

A Protecção de Dados lembra que a videovigilância serve para proteger bens e pessoas, numa lógica de prevenção de furtos e identificação dos seus autores, caso ocorram. “Mas estas câmaras nas salas não são colocadas por motivos de segurança. As creches acham que conseguem manter este segredo mas há sempre alguém que se queixa e acabamos por saber”, diz fonte da CNPD. Quando são violados os termos da autorização da CNPD, estamos na presença de um crime, explica a Comissão, que pode ser punido com prisão até dois anos.

O Instituto da Segurança Social, que licencia e fiscaliza a actividade das creches, diz que nas suas acções já foram detectados casos “pontuais” de sistemas de videovigilância. E quando este “não se encontre autorizado ou instalado conforme autorização concedida é participada a irregularidade à Comissão Nacional de Protecção de Dados”.

Questões laborais também em jogo quando se vigiam adultos

Além da privacidade das crianças, está em causa também uma questão laboral, dizem os profissionais do sector. “Trabalhar ou viver com uma câmara de vigilância apontada, não é saudável nem para o bom desempenho de nenhum profissional nem para o desenvolvimento de uma personalidade equilibrada”, alerta a Associação de Profissionais de Educação de Infância, embora desconheça a existência destes casos.

Os sindicatos que representam os educadores de infância também estão contra estes sistemas que violam o Código do Trabalho e um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que diz que os trabalhadores não podem estar sujeitos a vigilância contínua. “Sabemos que estes casos existem e que têm consequências para os trabalhadores. Mas as pessoas dificilmente avançam com queixas porque têm medo de represálias”, disse ao SOL Deolinda Fernandes, do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa.

rita.carvalho@sol.pt