O rapaz que estava ali sentado, na Portugália da Almirante Reis, a ver os alemães a ganharem aos ingleses – ficou 2-0 – tinha chegado alguns anos antes a Lisboa para estudar na Faculdade de Direito. Era a opção que sobrava depois de desistir de História e de Música.
Com 18 anos pisou Portugal com a cabeça carregada de viagens por África, grande parte em Angola – onde nasceu e onde o seu pai era juiz. Não trazia grandes expectativas de um país que só conhecia como potência colonial. Um “nojo”, como sempre lembrava aos amigos que foi fazendo. Mas as salas de aula de Lisboa dos anos 60 fizeram-no mergulhar num dos melhores tempos da sua vida, as lutas de estudantes. Quando deu por si, estava a militar no Partido Comunista. Nada de estranho para quem sempre gostou de extremos e tinha novos amigos com aquela orientação política.
Tudo parecia passar a correr e um ano depois do 25 de Abril a sua vida já tinha dado muitas voltas. O recém licenciado em Direito estava já muito ligado ao MRPP, partido que durante o Processo Revolucionário em Curso (PREC) confrontou o Partido Comunista Português. Naquele 28 de Maio de 75 , João Araújo tinha um importante trabalho político, mas empurrou a tarefa para um colega seu que estava com gripe. Não estava para aí virado e decidiu ir com um amigo beber uns copos e ver o jogo do ano.
Por decisão do governo provisório e do Movimento das Forças Armadas, enquanto estava na típica cervejaria lisboeta, foram detidos mais de 400 militantes do MRPP, que tinha sido suspenso em Março e proibido de participar nas primeiras eleições livres. Neste grupo estava o seu substituto. “Não fui preso porque não sou parvo”, brinca sempre Araújo quando revive o momento.
Mas na altura havia poucos motivos para brincar. “Foi duro. A maior parte não ficou em Caxias. Levaram-nos para Pinheiro da Cruz, onde estavam presas pessoas por crimes horríveis. E havia muitas doenças, sofremos infecções, nos olhos por exemplo, estivemos em condições terríveis”, lembra Carlos Oliveira Santos, um dos cinco membros do órgão máximo do partido.
O episódio não deixou Araújo indiferente. Foi um dos mais enérgicos na luta pela libertação dos “camaradas presos”. A primeira moção de apoio à libertação em todo o país foi conseguida pelo jovem de ascendência goesa e, coincidência das coincidências, numa Assembleia Geral do Sindicato dos Jornalistas. A mesma classe que, sem saber, muitos anos mais tarde o viria a criticar.
“A primeira moção para obter a libertação foi obtida por mim numa assembleia geral do Sindicato dos Jornalistas, que era dominado pelo PC. Quem mandava no partido na altura disse-me para ir lá obter uma moção do Sindicato dos Jornalistas. Fui e entrei pela AG e senti uma hostilidade inicial e saí de lá com a moção. Expliquei-lhes que ia lá para me fazerem um favor. E estavam lá amigos meus”. Caras que lhe acabariam por ficar na memória para sempre: “O Alexandre Oliveira, o Adriano de Carvalho, o Mário Castrim que votou contra e o Joaquim Letria. Gajos excelentes…”, recorda à Tabu.
Segundo Diana Andringa, também jornalista e sua amiga desde esses tempos, não ter sido preso por causa da final europeia foi um acaso, porque Araújo nunca fugiu. “Era um homem com um sentido de humor e uma coragem que não acabavam”, diz, lembrando um dia em que estavam à espera de um assalto do COPCOM e discutiam quem é que estaria disposto a ficar na sede a fazer segurança: “Muitos responderam que não poderiam arriscar ser presos porque não podiam perder o trabalho. Ele disse logo que não tinha esses problemas e que só tinham de lhe dar tempo para ir comprar uma pasta de dentes e uma escova. Era a única condição dele”.
Em 1978, foi já como advogado que voltou a dar nas vistas. Defendia um amigo, Vítor Manuel Pinote Santos, acusado de ser titular do arrendamento de uma casa que servia de hospital e de armazém de armas para o Partido Revolucionário do Proletariado. O julgamento, no Tribunal da Boa Hora, acabou com a absolvição do seu cliente, mas não estava tudo resolvido. Poucos anos depois, 'Vitó' voltou a ser preso, por ser considerado um dos cabecilhas das Forças Populares 25 de Abril (FP-25) – juntamente com Otelo Saraiva de Carvalho, Mouta Liz, Humberto Dinis Machado e Pedro Goulart. De novo escolheu o amigo Araújo para o defender, conseguindo sair ao fim de poucos meses.
O jovem advogado começava a ser conhecido no processo e por isso acabou a defender outros dois elementos: Maria Helena e Humberto Dinis. Era o preço do reconhecimento que havia ganho naqueles anos.
Entre amigos, o advogado que nasceu em Angola repete muitas vezes que o seu horror a “uma certa justiça, a mal parida” começou no caso das FP-25. Mas, segundo alguns juristas que o acompanharam, as impressões que deixou no meio judicial foram as melhores. “Foi um excelente advogado”, assegurou Artur Marques em Novembro – quando Araújo era ainda um desconhecido para o grande público. Marques também representou arguidos no processo em que estavam em causa atentados à bomba, homicídios, assaltos a agências bancárias e a repartições de finanças, nos anos 80.
40 anos depois o jogo não acabou
Hoje, o jovem advogado de outrora admite surpreender-se por ainda estar vivo. Acorda todos os dias ao som da Antena 2 – só desliga quando começa o jazz, que acha uma “parvoeira”. Depois, quando tem tempo, continua no canal Mezzo. Gosta tanto de sentir o que ouve que se tivesse de escolher uma limitação preferiria ser cego a perder a audição. Sempre que conta esta sua mania pela música aproveita para lembrar o seu Sporting: “E antes as duas, ser cego e surdo, a ser do Benfica”.
Os 65 anos pesam-lhe mais que a muitos outros da sua geração. Justifica – sempre com um sorriso – que as suas doenças são um problema de “raça”. Mas di-lo com orgulho: é oriundo de uma casta muito respeitada na Índia, a mesma da família de António Costa, os brâmanes cristãos.
Quem com ele se cruza habitualmente já conhece a história da má herança genética de trás para a frente: O pai morreu com 62 anos e, tirando o caso de um tio que viveu mais um pouco, os genes da família são vistos como uma inevitabilidade. Já para não falar nos cigarros que fuma, uns atrás dos outros, e dos copos que bebe quando acaba o expediente. Nem mesmo os problemas graves de saúde que tem o fazem abdicar do que lhe faz mal. Motivo? A morte não o assusta, a menos que “seja de parto”, brinca. Quando está mais a sério, Araújo tem uma expressão muito característica: já vivo por empréstimo”.
Emprestada ou não, a vida deu-lhe muito até agora. Não é que seja pessoa de fazer balanços, mas quando faz uma retrospectiva por algum motivo não consegue passar ao lado do projecto profissional que lhe deu mais gozo: a concepção de toda a legislação que regulou o funcionamento e permitiu a criação da Caixa Central de Crédito Agrícola. Fez tudo do zero.
Já do seu percurso escolar há uma frustração, a de não ter andado no Colégio Militar. Logo ele que era incapaz de ter ido para a tropa e estar às ordens dos “mais boçais indivíduos”. O que o atrai na instituição de ensino militar é a forte aposta em áreas técnicas – acredita que Portugal não pode continuar a viver só de Humanidades – e defende que a “máfia” que os ex-alunos criam é de uma solidariedade sem limites.
Ainda tentou que um dos seus dois filhos seguisse o trilho escolar que nunca conseguiu: sem sucesso. Mas nem tudo foi em vão, conseguiu que duas das suas três filhas seguissem a advocacia – uma é especialista em direito privado e outra em direito público.
Quem o conhece diz que olha para todos os filhos com muito orgulho, mas as que são advogadas o deixam particularmente babado.
A vitória final
Araújo sempre teve uma boa relação com os filhos, mas comenta entre amigos que desde que começou a defender José Sócrates tem de ter cuidado quando sai sozinho com alguma das filhas. “Conta que um jornal publicou uma notícia a dizer que estava a jantar em boa companhia num restaurante e, na verdade, a boa companhia era uma das suas filhas. Agora diz que tem mais cuidado com a sua vida social”, explica uma pessoa do seu círculo de amigos. Possivelmente estava até a pedir-lhe um conselho. Sim, João Araújo não esconde de ninguém que se socorre das filhas sempre que tem alguma dúvida num processo. E já teve algumas na Operação Marquês.
O advogado que todos os dias é descrito como solitário e desconcertante na comunicação social, considera-se apenas uma pessoa “sincera” e “autêntica”. Mas ao que a Tabu apurou todas as suas intervenções públicas são preparadas, mesmo as mais surreais que fez à porta do Tribunal Central de Instrução Criminal em Novembro: “Na altura ele achava que com aquele discurso, que foi muito bem preparado, contribuiria para a descrispação e desdramatização do caso”, contam amigos.
João Araújo não é só um advogado. Ele acredita mesmo na inocência de José Sócrates, um político que já conhecia e por quem já tinha admiração antes de defender. Nas conversas com amigos advogados nunca coloca a hipótese, mesmo que por teoria, de o Ministério Público conseguir acusar o ex-primeiro-ministro. Há até os que já se riem quando o advogado de 65 anos começa a comparar os feitos de Sócrates aos de outros grandes portugueses, como Marquês de Pombal. Resignado, termina quase sempre a dizer que, em Portugal, os grandes têm um fim pequeno.
Será essa convicção que mais incendeia a sua relação com a imprensa, levando-o a excessos de linguagem que acabam sempre criticados, até pelos jornalistas de quem é amigo. Diana Andringa não teve qualquer hesitação em mostrar que não gostou de ver um amigo, como Araújo, a mandar uma repórter do Correio da Manhã tomar banho. A jornalista deixou a sua posição vincada numa crónica na Antena 1 e encaminhou-a por email para Araújo. A resposta nunca chegou, mas o advogado registou o descontentamento.
Críticas dos amigos à parte, Araújo tem recebido também nas ruas algumas mensagens menos agradáveis. A última foi a de uma senhora que seguia num jipe BMW, mesmo à porta do seu escritório em Lisboa. Quando o viu na passadeira pôs a cabeça fora do vidro e gritou: “Qu'a vergonha, Qu'a vergonha!” Mas existe também quem o aborde de forma simpática – diz, aliás, ser a maioria dos casos. E adianta que mesmo quem não simpatize com o seu cliente pode simpatizar consigo.
A quem lhe fala em 'polémicas', Araújo responde quase sempre: “Não tenho polémicas com jornalistas nem com ninguém, porque quando um não quer, dois não polemizam”. Mas tem.
Se a medicina fosse uma ciência exacta, se a equipa do Hospital de Santa Marta que lhe diagnosticou o cancro há sete anos estivesse certa, João Araújo já cá não estaria para polémicas nem para defender José Sócrates. Sabe que o jogo pode estar a acabar, mas só pensa na vitória. Também neste caso já conseguiu uma moção de apoio, a de um juiz da Relação de Lisboa.