Em causa está uma norma legal de 2007 que impede um magistrado de decidir recursos em processos onde já o tenha feito anteriormente. Mas as interpretações dividem-se, uma vez que há quem entenda que nenhum desembargador está impedido de analisar mais do que um recurso do mesmo processo antes do julgamento.
No entanto, numa coisa todos estão de acordo: é que, após o julgamento, caso este venha a acontecer, nenhum dos juízes que já analisaram recursos na fase de inquérito pode decidir os recursos finais.
Sócrates com cinco recursos em sete meses
Em apenas sete meses, desde que José Sócrates foi detido, em Novembro, deram entrada no Tribunal da Relação de Lisboa nove recursos no âmbito da Operação Marquês – que tem já dez arguidos. O último a ser constituído foi Armando Vara, que está em prisão domiciliária desde quinta-feira, tendo já anunciado que vai recorrer da decisão para a Relação (ver caixa).
Do total de recursos, apreciados por 16 juízes, cinco foram interpostos pela defesa do ex-primeiro-ministro. Gonçalo Trindade Ferreira, João Perna e Carlos Santos Silva apresentaram um, cada um.
Entre advogados e magistrados não sobram dúvidas de que aquela norma é abrangente e pode ter muitas leituras. “Numa perspectiva literal, num processo em que há co-arguidos, a situação de um é susceptível de afectar a dos outros. E, portanto, o juiz que manteve, por exemplo, a medida de coacção de um não pode voltar a intervir no recurso dos restantes”, defende um reputado penalista, considerando assim que, mesmo antes do julgamento, basta um juiz se pronunciar uma única vez sobre um arguido para ficar de todo impedido de tomar outra decisão no processo.
Mas há juristas que, concordando que a norma se aplica na fase pré-julgamento, dizem ser preciso fazer uma “utilização útil e racional” da mesma.
Para esses, no âmbito de um determinado processo, o magistrado só deve ficar impedido de apreciar os recursos de um arguido sobre o qual já se tenha pronunciado uma vez. Quanto aos outros co-arguidos está livre para julgar. “A interpretação da norma legal em questão não pode ter uma leitura maximalista visando proibir o julgador de recurso de intervir em eventuais recursos de co-arguidos do mesmo processo”, explicou ao SOL um jurista.
O Tribunal da Relação de Lisboa vai ainda mais longe: para o presidente, Vaz das Neves, nesta fase, não há impedimentos para nenhum juiz, seja para analisar um recurso de um arguido pela primeira vez ou não. “A prisão preventiva pode ser apreciada e reapreciada várias vezes, inclusive pelo mesmo juiz”, sublinha Vaz das Neves. E exemplifica: “Se entrar outro recurso de José Sócrates, será distribuído e analisado com toda a naturalidade”.
Processo ou recursos interlocutórios?
Três dos 16 juízes a quem coube até agora intervir na Operação Marquês já decidiram mais do que um recurso. Foi o caso do desembargador João Carrola, que participou como adjunto no primeiro recurso interposto pelos advogados de Sócrates e, já depois, foi relator noutro recurso, interposto por João Perna, ex-motorista de Sócrates.
“Na fase de inquérito, o que estamos a apreciar é apenas a situação concreta de cada arguido e não o processo em si”, explica o presidente da Relação de Lisboa, defendendo que é “importante não confundir o processo no seu todo com recursos interlocutórios que muitas vezes dizem respeito a questões meramente formais que não interferem no andamento normal do processo” – como por exemplo nulidades invocadas pelos arguidos (caso de Sócrates).
Vaz das Neves defende, portanto, que “só após o julgamento, é que os juízes que intervieram em fases anteriores ficam impossibilitados de participar no recurso final”.
Mas mesmo entre os desembargadores há quem conteste este entendimento. Sem se querer identificar, um desses magistrados explicou ao SOL por que não concorda com a tese do presidente da Relação “Se fosse assim, poderíamos aceitar que um juiz que já avaliou a prisão preventiva de Sócrates, se sorteado de novo, é igualmente competente para julgar um segundo recurso desse mesmo arguido. Penso que não, porque tomou uma posição”.
Esta interpretação mais abrangente levaria a que em processos com dez arguidos, como a Operação Marquês, rapidamente se esgotassem os juízes da Relação de Lisboa. E perante esse cenário, explica um outro penalista, teria de se fazer uma interpretação “ab-rogante” da lei, ou seja, “diante de uma incompatibilidade absoluta entre a norma e um princípio geral do ordenamento jurídico, torna-se impossível aplicar essa mesma norma”.