Estamos em 2015 d.C.. Toda a Grécia está ocupada pelo euro. Toda? Não! Uma aldeia povoada por irredutíveis helénicos resiste agora e sempre ao invasor. Mas como uma aldeia tão pequena consegue enfrentar um tão poderoso exército? Neste embate de David contra Golias, em vez da moeda única, a tal aldeia bate-se com uma unidade monetária própria, os TEM (sigla grega para Unidade Local Alternativa), uma moeda à parte que funciona, sobretudo, em transacções em locais de pequena dimensão.
A Grécia não saiu do euro – pelo menos, até ao fecho desta edição – em troca de acrescentar mais uns dez furos ao cinto da austeridade, mas, em Vólos, uma cidade com pouco mais de 140 mil habitantes na região de Magnésia, na Tessália, o TEM começa a ser rei. Esta poderia ser a aldeia dos irredutíveis gregos, como era a dos gauleses no preâmbulo das histórias de Astérix. Porque se o país decidiu não abandonar a moeda única, Vólos já a deixou há quatro anos. Outrora centro piscatório e agrícola e forte polo industrial, a cidade sentiu, como todo o país, os efeitos rápidos da recessão causada pela austeridade. O resto é uma história que até nós conhecemos por aqui, embora sem a gravidade destes parentes do Sul da Europa: intervenção estrangeira nas finanças e na economia, rombo no PIB, desemprego, emigração maciça, falta total de perspectivas de futuro.
A adopção do TEM foi gradual, limitada a determinadas transacções. Mas cedo foi galgando ruas, bairros e freguesias inteiras da cidade. Em 2011 eram umas centenas de pessoas que a usavam em sistema fechado, dois anos depois os organizadores já contavam 1300 almas a fazer a vida com TEM em exclusividade. Hoje são mais ainda. «Para muitos, a moeda desempenha o duplo papel de complementar o rendimento perdido e de criar uma teia protectora neste momento particularmente difícil das suas vidas», dizia ao Guardian Yiannis Grigoriou, um sociólogo que é um dos fundadores da rede.
Há quem use TEM na totalidade, em complemento de um magro salário ou a meias com sistemas de troca directa. Os pescadores de Vólos, também obviamente atingidos com dureza pela austeridade, acabaram por inaugurar a rede, mas a fazer troca directa. Os preços não eram difíceis de determinar, era um produto de trabalho – real, não o dos bancos ou da especulação financeira – por outro. Por exemplo, afirmava Christos Xegandakis, um dos pescadores veteranos da cidade, à National Public Radio (NPR) norte-americana: «Dois quilos de batatas podem ser trocados por um quilo de peixe fresco». É mais fácil, mais rápido, assegura postos de trabalho e agrada a todos». Bem, talvez não ao Eurogrupo…
O TEM acabou por ser a transição natural, ou complementar, deste sistema. O câmbio para o euro é de um para um e, apesar de não haver notas com a devida assinatura do governador do Banco Central, marca de água e a imagem de uma figura simbólica do país para completar o figurino, uns simples papéis assinados e passados de mão em mão fazem as vezes do dinheiro. O fundamental, na rede, é o conceito-chave de qualquer actividade económica: a confiança. O TEM pode pagar alimentos, serviços vários – do cabeleireiro às explicações de inglês ou matemática – e ser usado como garantia em pequenas quantias.
Alguns negócios fazem os seus preços a meias entre o euro e o TEM. A dona de uma óptica do centro da cidade confessava à NPR que 30% do valor de cada par de óculos vendidos é feito em TEM. O valor em euros destinava-se a salários e a pagamentos a fornecedores. Com o encerramento dos bancos nas últimas duas semanas, a moeda alternativa ganhou outra importância.
É tudo muito bonito, dirão os mais cépticos ou os crentes cegos na liberdade dos mercados. Então e a massa de impostos paga pelos gregos, que este último pacote de austeridade deverá acentuar ainda mais? É que o TEM, como outras moedas alternativas na Grécia – e fora dela, ao longo da História humana – está isento até determinado tecto. Logo em Setembro de 2011 o governo grego – era ainda primeiro-ministro George Papandreou – fez aprovar uma lei no parlamento que atribuía às redes de troca (TEM incluída) o estatuto de organizações sem fins lucrativos.
Hoje a Grécia, ontem a Argentina
O lucro, neste caso, é outro. Não é destinado a insuflar capital em crescendo, para que a queda seja maior no futuro. A solidariedade entre os gregos aumentou, e há redes semelhantes, de alguma envergadura, nos subúrbios de Atenas, em Patras, em Katerini e, nas ilhas, em Corfu e em Creta. Nesta última, a cidade de Ierápetra adoptou o Kaereti como unidade monetária alternativa.
Mas nem só de moeda alternativa vivem estas redes. Há que não esquecer os bancos de tempo – à semelhança do que existe por cá – ou redes que se socorrem, ou não, de moeda alternativa. É o caso da rede Fasouli, destinada sobretudo a jovens desempregados, ou o bazar solidário Skoros, ambos em Atenas. E estes são apenas alguns exemplos.
As mesmas redes levantaram do chão comunidades inteiras noutra crise gigantesca recente. Na Argentina, em 2001, o país entrou na bancarrota, lançando milhões de pessoas na pobreza extrema. No ano seguinte, quatro milhões de pessoas estavam integradas em clubes de troca, que consistiam num intercâmbio de produtos e serviços sem recurso a qualquer moeda.
Na altura, o peso argentino estava indexado ao dólar para conter a inflação e as desvalorizações sucessivas. Isto implicava falta de soberania para gerir a moeda própria – onde já ouvimos esta história -, mas, quando o governo resolveu desindexar a sua moeda da norte-americana, a crise acentuou-se.
A sobrevivência, para muitos, foi garantida então pelos sistemas de troca directa. No entanto, em 2003, muitas destas redes começavam a ruir, devido a suspeitas de fraude.
Porém, no campeonato mundial das moedas paralelas, o Brasil terá, por certo, um dos lugares, senão o lugar cimeiro. As contas variam na imprensa económica, mas existem entre 70 a 100 unidades monetárias que não dependem do banco central. São produto de bancos comunitários, desenvolvidos como modo de dar impulso económico em cidades pequenas, de regiões deprimidas, que não interessam aos ‘mercados’. De acordo com dados da Rede Brasileira de Bancos Comunitários, havia o equivalente a 500 mil reais (a moeda oficial, o que corresponde a 145 mil euros) a circular em moedas paralelas, com 350 mil pessoas a usá-las. Os números são de 2012, representam uma gotinha no oceano numa economia daquela dimensão – ou em qualquer outra -, mas é muito, considerando os lugares onde se afirmaram.
Não são ricos, são ‘gostosos’
Os nomes acompanham a colorida imaginação brasileira: há notas de Palma, Gostoso, Maracanã, Par, Cocal, Ita, Semear, Cajueiro, etc, etc. O fenómeno nem é novo no Brasil, mas começou a generalizar-se, sobretudo no Nordeste – a região mais pobre – na viragem do século passado.
Em 1998, uma associação de moradores de um bairro pobre de Fortaleza, no Ceará, o Conjunto Palmeiras. Depois de vários dias de reuniões de comités de moradores, decidiu-se como estruturar o bairro, a rebentar pelas costuras devido às migrações do interior para escapar à miséria.
Água mole em pedra dura tanto deu até que furou: os habitantes já tinham obtido conquistas expressivas, como saneamento básico, electricidade pública e escolas, um recorde a nível nacional.
Faltava, efectivamente, o emprego. Mas, como o Conjunto Palmeiras não era necessariamente atractivo para um banco, os moradores criaram o seu. Nasceu então o Banco Palmas, que se dedicou ao investimento local, incluindo a criação da tal moeda paralela, a Palma.
Passadas décadas deste momento fundador, os resultados são promissores. Há negócios locais, que empregam e servem os moradores, com 90% da riqueza gerada a ficar no bairro. O banco, entretanto, passou a instituto. Orienta e financia a formação de outros bancos comunitários, em estados muito pobres como o Piauí, por exemplo, onde, em 2008, foi introduzido o Cocal pelo banco solidário de São João do Arraial, pequena cidade do interior.
Mas não se pense que países atingidos por crises desesperantes ou regiões economicamente frágeis por tradição têm o exclusivo destas moedas. Em Inglaterra, a austeridade oferecida por David Cameron tem provocado, também, erosão social. Em Bristol os cidadãos decidiram criar uma libra própria, que tem o nome da cidade. Esta até conta com a possibilidade de se usar cartão de crédito, mas só é válida no comércio local, em 300 estabelecimentos que aderiram à nova moeda.
A ideia é livrar os negócios de pequena dimensão, fortemente ancorados na comunidade, da voragem das multinacionais, as verdadeiras protegidas de um regime de ‘concorrência’. É mesmo possível pagar impostos locais com a libra de Bristol.
E até a toda-poderosa e omnipresente Alemanha conta, pelo menos, com um exemplo de moeda paralela. Fartos de andarem sem dinheiro, os cidadãos da pequena localidade de Prien am Chiemsee, na Baviera, decidiram-se a adoptar o Chiemgauer, em 2003. Ironicamente, fizeram-no bastante antes dos gregos de Vólos…
ricardo.nabais@sol.pt