Imunes ao cancro?

Pense nisto como um campo de batalha. De um lado da contenda, temos um exército de células responsáveis pela defesa. Do outro, células que se replicam, como se se disfarçassem de células benéficas, mas que na verdade vão canibalizar as que estão à volta. E vão espalhar-se, como um exército invade um país numa guerra-relâmpago. 

Esta pode ser uma forma muito simples, até pueril, de definir os dois lados da contenda quando alguém tem um cancro. A diferença para um campo de batalha efectivo é que as células responsáveis pela defesa depõem as armas, ludibriadas pelas células tumorais.

Por isso, ao longo dos anos, vários tratamentos foram empregues nesta guerra, mas tinham de vir reforços de fora. Ou seja, era como se chamássemos pela ajuda de outros exércitos mais poderosos para nos defendermos de uma invasão. A quimio e a radioterapia são os exemplos mais famosos desta aliança. Estes tratamentos continuam a ser necessários para a maioria dos casos mas não são específicos para as células tumorais e, por isso, deixam sequelas incómodas. Daí que, recentemente, os investigadores tiveram mais um momento eureka e pensaram: por que não restaurar a capacidade das células de defesa em reconhecer as células tumorais como estranhas ao corpo?

Este será, também numa explicação pueril, a base de uma nova ideia que se tornou ordem do dia no arsenal de novas terapias contra o cancro. Chama-se imunoterapia, a arte de ‘ensinar’ ao nosso sistema imunitário que as células tumorais que ali estão são, efectivamente, nossas inimigas. E, por isso, têm de ser destruídas. Os primeiros medicamentos baseados nesta ideia receberam agora aprovação da EMA (a autoridade europeia dos medicamentos), enquanto outros mostram, ainda em fase de testes, resultados que demonstram que “estamos à porta de qualquer coisa grande”, diz Luís Costa, especialista em oncologia do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Trata-se de fármacos (anticorpos) que bloqueiam o sistema usado pelas células tumorais em ‘adormecer a defesa’ pela actuação no receptor PD-1.

Luís Costa, de 54 anos, dedica-se à área há 27. E esteve, recentemente, numa conferência sobre novos caminhos da investigação clínica em Portugal. A imunoterapia, pois claro, esteve em evidência. Mas em que ponto estamos para podermos ser tão optimistas? É que esta nova terapêutica apresenta-se como potencial pop star no conjunto de tratamentos a esta doença tão nefasta: os resultados têm sido bons e as reacções adversas são diferentes, quando a comparamos à rádio ou à quimioterapia. Luís Costa explica melhor: “Em oncologia, uma terapêutica nova tem de ser testada primeiro no espectro mais difícil da doença. Neste caso, é o da doença metastizada, avançada, no qual raramente os tumores são curáveis”, explica. “Isto quer dizer que, quando vem um tratamento novo, um bom resultado significa, por exemplo, prolongar significativamente a vida dos doentes, mas não significa necessariamente curá-los”. Os avanços medem-se passo a passo. “Significa, por exemplo, que no caso destas novas terapêuticas, podemos dizer que tem havido taxas de remissão de tumores que antes não se observavam. É verdade. E a duração dessa resposta é maior”.

Para já, os medicamentos têm desempenhado um bom papel a ‘ensinar’ o sistema imunitário a reconhecer as células adversas – as tumorais – e a atacá-las. As taxas de resposta a este novo tratamento, continua Luís Costa, podem não ser tão altas como a de algumas terapêuticas alvo mas têm “uma resposta mais duradoura no tempo”. Outro aspecto muito interessante desta nova forma de tratar o cancro através do sistema imunitário, consiste no facto de a imunoterapia não estar tão sujeita a modificações das células tumorais com o tempo – os tumores tornam-se um grupo de células diferentes, heterogéneas, e que não são igualmente sensíveis à quimioterapia ou mesmo às novas terapêuticas alvo. No caso de uma imunoterapia eficaz, o hospedeiro ataca as células tumorais com maior abrangência.

No caso dos doentes com melanoma, uma forma particularmente agressiva de cancro de pele, os resultados foram muito promissores. Em alguns doentes verificou-se uma remissão dos tumores. Antes de usar a tal palavra, a cura, Costa prefere um optimismo mais moderado. “A nós custa-nos usar a palavra ‘curados’ porque é, digamos, um wishful thinking, algo que desejávamos muito, mas de que não temos ainda a certeza absoluta. Mas há doentes que estão em remissão tão prolongada que parecem de facto curados. São cerca de 20% dos casos, o que antes não era pensável alcançar”.

Falta passar o tempo necessário para vigiar o alcance e o prolongamento no tempo destas remissões. E há que estudar, ainda, alguns efeitos adversos destas novas terapias. À partida, elas seriam “supostamente muito menos tóxicas do que os antigos tratamentos de quimioterapia, mas é preciso salientar que estas novas terapêuticas também têm toxicidade”. Mas é uma nova forma de efeito secundário. “Às vezes os doentes têm reacções de ataque a outros órgãos que não têm o tumor, como se fosse o sistema imunitário a atacar o próprio corpo. De modo que alguns pacientes que já são portadores de doenças auto-imunes não podem fazer alguns destes tratamentos, porque podemos exacerbar essas doenças”. E que doenças são essas e já reportadas por estudos clínicos? Pneumonites e colites, algumas graves. Quem tiver predisposição para elas, fica, para já, fora da selecção. Seja como for, estas novidades são muito bem-vindas no combate ao cancro.

ricardo.nabais@sol.pt