Wolfgang Schäuble. O outro lado de um velho lobo

O quarto andar do moderno complexo residencial está quase pronto. A obra das más notícias é ainda mais rápida, e nem precisa de passar do rés-do-chão. Em 2011, a imprensa alemã acompanha a mudança de casa do ministro das Finanças, de malas aviadas para um refúgio em Offenburg, círculo eleitoral que representa. “Portas de aço…

De pouco serve o sofisticado lote de precauções, às portas da Floresta Negra, cenário onde o lobo mau dos irmãos Grimm fincou o dente numa avó desprotegida. As ideias mais simples são sempre as mais eficazes, revela o balanço de uma noite de passagem de ano explosiva. “Puseram fogos de artifício na caixa de correio, que ficou completamente destruída”, recorda Ilse Schmidt ao jornal local Badische Zeitung. “Se Schäuble se fixa aqui, o que não irá acontecer mais?”

O corpo de Wolfgang aprendeu que um segundo basta para uma reviravolta no destino. E o mais férreo determinismo da mente esbarra num mundo que caminha sobre a incerteza, venha ela da vizinha da porta ao lado, de um país ao virar da esquina, de um continente à deriva, ou das cordas de uma raqueta do outro lado da rede.

No frente a frente em calções, Schäuble dominava todos os truques, lutava por cada bola, odiava perder. “Acho que os políticos jogam ténis como fazem política”, descreve Hans Peter Schütz, que dividiu a quadra com um dos mais temidos adversários, até ao dia em que duas balas serviram a sentença: match point.

“Não posso escapar à cadeira de rodas, ela impede-me, mas não de prosseguir na política”, garante décadas mais tarde o fiel conselheiro de Merkel ao jornalista que o segue há mais de 40 anos, e que em 2012 o biografa em Duas Vidas, em vésperas de completar 70 anos. A obra certifica o que as notícias devolvem todos os dias sobre o homem cuja longevidade no court político europeu só encontra rival no luxemburguês Jean-Claude Juncker: os verbos conjugam-se no presente. O rosto a quem as setas de milhares fazem pontaria, e que 72% dos seus compatriotas apoiam, a julgar por uma sondagem interna de Julho, não se esgota no passado. Domina todos os truques, luta por cada bola, odeia perder – ainda que sábado passado tenha garantido à Der Spiegel estar próximo “de atingir o ponto em que fico mais doce com a idade”.

“O seu marido é intolerante como parece?”, sondava a revista Cicero por ocasião desse badalado 70º aniversário de Wolfgang. “Que tenha conhecimento, não”, responde imperturbável Frau Ingeborg, a mulher a quem perguntou “porque não me deixaste morrer?” quando a esperança se sentou numa cadeira desconfortável. Com ela teve quatro filhos: Anna, jurista, Christine, ligada ao imobiliário, Hans-Jörg, gestor de empresas, e a jornalista de política Juliane, a mais nova do clã, nascida em 1976, três anos depois de biógrafo e biografado se conhecerem.

Em 1973, Hans é então um jovem correspondente. Wolfgang, um principiante como deputado, eleito um ano antes para o Parlamento Federal. ‘Desportivo’, ‘ambicioso’, revela-se muito distante do estereótipo do político sedentário de barriga proeminente. Um atleta resiliente com a moral de Sísifo, um ‘modelo’, garante Schütz, para o braço-direito da chanceler. Condenada a repetir a mesma tarefa, a personagem da mitologia grega empurra uma pedra até ao topo de uma montanha. Sempre que está a um passo do cume, a pedra rola montanha abaixo e deita o esforço por terra. Camus tratou o absurdo e a busca de sentido. Interrogou-se e interrogou-nos. A plenitude exige o suicídio? A Europa que não sente as suas pernas vai respondendo como pode, até com paralisantes chalaças. “Propus ao meu amigo Jack Lew (secretário do tesouro norte-americano) trazer Porto Rico para a zona euro, se em troca os EUA levassem a Grécia para o dólar”, partilha Schäuble numa conferência no começo de Julho, em Frankfurt. E remata como um profissional da relva que resolve o duelo com um ás. “Ele pensou que era uma piada”.

Gargalhar é quase sempre uma imprudência, mas 1989 é chão fértil para sorrisos francos. Não é brincadeira: o muro que divide Berlim vem abaixo. Na qualidade de ministro do interior do democrata cristão Helmut Kohl, o chanceler da reunificação, Schäuble é uma figura-chave no processo que decorre entre 9 de Novembro daquele ano e 3 de Outubro de 1990, quando por fim Este e Oeste se despedem da fronteira de pedra. Enquanto Kohl negoceia com os aliados, os parceiros europeus da Alemanha Ocidental, e o governo da Alemanha Oriental, cabe a Schäuble implementar os acordos, e assinar o Tratado de Reunificação em nome da República Federal Alemã. “Levantaram-se alguns problemas técnicos, mais do que políticos”, recorda ‘o príncipe da coroa de Kohl’ por ocasião dos festejos do 25º aniversário da queda do muro.

Apenas sete meses depois da reunificação, a euforia cede lugar ao choque. Mais uma vez, não é piada, e só um mentecapto faria troça do imponderável que se seguiu. “Na minha opinião, a segurança foi negligenciada. Estavam convencidos que, neste país, nada aconteceria com ele”, recorda em entrevista ao Star Hans Peter Schütz, que o acompanhava na altura. “Não sinto as minhas pernas”, são as primeiras palavras da vítima no rescaldo do “acidente”, como há-de passar a referir-se ao atentado de que foi alvo. Depois das 22  horas e quatro minutos de uma fria sexta-feira, 12 de Outubro, o léxico é um detalhe. No final de um comício num restaurante em Oppenau, no estado de Baden-Württemberg, o revólver de Dieter Kaufman actua com a precisão do bisturi, apontado à coluna do político.

A 20 de Outubro de 1990, o eminente psiquiatra Islaefener é desafiado a prever a natureza de um atirador esquizofrénico: “Há uma ausência de compaixão neste homem (…) para ser honesto, o risco de voltar a cometer outro acto violento situa-se numa percentagem elevada”. Não queira ser mais vilão que o vilão – o médico refere-se a Kaufman.

Cinco anos mais tarde, o nome de Schäuble é apontado ao cargo de chanceler. E um vertebrado dos jornais sabe que a pergunta rainha não pode morrer na boca: ‘um homem numa cadeira de rodas pode ser chanceler?’. O interlocutor antecipa-se e alivia o desconforto de Shütz. “O homem que está sentado nesta cadeira é um aleijado”.

Mas a maior fraqueza do político que ficou sempre aquém dessa posição, não é a franqueza, antes a lealdade a Kohl e a Merkel. “O facto é que a lealdade de Schäuble é sempre primeiro à coisa e só depois à pessoa”, esclarece Hans, que evoca outra contrariedade, em 1999.

Formaliza-se a ruptura definitiva com Khol, cúmplice de longa data, retirado da política depois de perder as eleições para o social-democrata Gerhard Schröder. Pouco depois, Schäuble é apanhado pelo escândalo do financiamento ilegal do partido. Inicialmente, nega ter recebido 100 mil marcos alemães para a CDU de Karlheinz Schreiber. Mas acaba por admitir publicamente o seu vínculo ao traficante de armas. Fragilizado pela história, abandona a liderança dos democratas cristãos, agarrada por Angela Merkel, que em 2000 assume as rédeas da CDU, guiando-a à vitória em 2005.

Atrás de uma mulher poderosa está um tesoureiro brioso, que se emociona ao receber o Prémio Carlos Magno em 2012. “Para um chanceler ou presidente é fácil recebê-lo, mas não para um simples ministro das Finanças”, confidencia ao biógrafo nessa ocasião o veterano nascido a 18 de Setembro de 1942, em Freiburg im Breisgau, no seio de uma família que sempre respirou política. E já agora, lembra o economista David McWilliams, que poderia ter deixado de respirar em solo alemão, com ou sem política pelo meio, se em 1947 “alguns americanos iluminados não tivessem travado o plano do presidente Truman, de tirar 25 milhoes de alemães da Alemanha”

Conselheiro fiscal, Schäuble pai ocupa um lugar no Parlamento do estado Baden depois da guerra. A actualidade sempre foi discutida em casa, e os três filhos do casal estimulados a participar no debate. Wolfgang, o irmão do meio, e o único ainda vivo, frequenta as universidades de Friburgo e Hamburgo. O diploma em Direito chega em 1971. Ingressa na administração fiscal em meados de setenta, e entre 1978 e1984 fixa-se como advogado em Offenburg. A carreira na política começara em 1961, tempo de adesão à Junge Union, a juventude da CDU. As portas do Bundestag abrem-se em 1972. Quatro anos mais tarde, dá novo passo no partido, ao leme do comité nacional para o desporto, função desempenhada até 1984. Em Novembro desse ano, o chanceler Helmut Kohl confia-lhe a pasta dos Assuntos Especiais, rótulo feito por medida para alguns dos desafios pela frente, que exigem intervenção com a subtileza de pinças. Quando Kohl compara a habilidade propagandística de Mikhail Gorbachev à de Joseph Goebbels, Schäuble aconselha o chanceler a não pedir desculpas pelo comentário ao então secretário-geral do Partido Comunista Soviético – o acto de contrição seria um sinal de fraqueza.

Mudanças no gabinete dão-lhe o acesso à pasta do Interior em Abril de 1989. Com a popularidade em flecha, e a morder os calcanhares ao estado de graça do chanceler, em Novembro de 1991 assume a liderança dos Democratas Cristãos, rendendo o septuagenário Alfred Dregger. O novo milénio oferece via verde para a câmara de Berlim, mas Frank Steffel leva a melhor a reunir consensos dentro do partido, enquanto outras vozes o apontam à presidência do país, na corrida de 2004, pela bagagem política. Só que o escândalo do financiamento continuou a fazer sombra ao defensor da integração europeia para quem o ‘Grexit’ está longe de ser um palavrão incómodo, e a austeridade nunca uma servidão demasiado pesada para os homens da terra dos deuses.

A fleuma foi por várias vezes testada pela “ingenuidade ridícula” de helénicos como Varoufakis. De resto, os encantos do Mediterrâneo estão longe de contagiar as férias do vilão da tragédia grega. Fiel ao seu destino de sempre, costuma “passar uns dias no Mar do Norte”, em Sylt, revela a revista Focus, enquanto o Die Welt dá eco aos lamentos de quem se viu privado de antigas predileções ao ar livre. “Tem saudades de vaguear pela Floresta Negra no Outono, e de ir esquiar para os Alpes no Inverno”

Para um ministro das Finanças, as recepções sociais não são o prato mais forte. E as limitações impostas à sua circulação, sempre um exercício fatigante, não deixam de ser uma boa desculpa para saídas – neste caso não à grega, mas à francesa. “Há situações bem melhores que me rodear de gente ao pé de um buffet. Tenho saudades de ficar em casa”, desabafa ao mesmo jornal o cidadão que tanto se inquieta com as propostas que chegam das bandas da Acrópole como com as objectivas dos fotógrafos em pleno assalto ao Bundestang. “Subir o caminho da rampa é exaustivo. Recolher imagens é estúpido, o meu esforço é evidente. Se me apontam uma câmara, sou sempre hostil”

Membro do parlamento germânico há mais de 40 anos, reputado pela capacidade de estabelecer pontes no âmbito do complexo sistema do governo federal, atravessou cinco ministérios. Por estes dias, o The Guardian recupera a veia mediadora, e compara os desafios do período da reunificação com o actual cenário europeu. “No Verão de 1990, Kohl e Schäuble não eram economistas de Chicago que gostavam de experiências radicais, mas políticos que queriam ser reeleitos, e que injectaram milhões numa economia frágil. É aqui que termina o paralelo com a Grécia: havia limites políticos à austeridade que um governo podia impor ao seu povo”, defende Dirk Laabs, autor de The German Gold Rush: The True History of the Treuhand, lançado este mês. “Se Schäuble é duro com a Grécia , é porque o sue eleitorado assim o quer; não é que ele não se preocupe com os gregos, ele quer que as pessoas pensem que ele não se preocupa, porque retira vantagem política dessa crença”

À semelhança de outros protagonistas do longo folhetim europeu, o ministro das Finanças passa boa parte dos dias em trânsito. Mas se o visitam no seu escritório, o estado da secretária fideliza-se ao clichê: perfeitamente arrumada. Quanto às pastas, estão etiquetadas com diferentes cores. Em fundo, na parede, um quadro do pintor contemporâneo Jörg Immendorff, com a palavra audácia no título. O panorama é traçado no começo do ano pelo Zeit, que o interpela: “Porque tem aguentado tanto na política?” “A firmeza é um gesto heróico. Eu amo a política”, atira Schäuble, então orgulhoso pelo orçamento doméstico equilibrado que marcara o ano anterior, apesar da imprensa alemã ter relativizado a façanha. “Rosnou um pouco por não lhe ter sido devidamente creditado. É a sua maneira de esconder a vaidade”, aponta o jornal, que antes de se despedir do seu gabinete assiste à troca de impressões entre o responsável e o assessor de imprensa Martin Jäger, sobre o impacto das alterações climáticas na Floresta Negra. Cai menos neve no Inverno do que nos anos anteriores? Jäger, oriundo da região de Swabian Alb, diz que não. Schäuble, o residente, nem que seja temporário, de Offenburg, paredes meias com a cordilheira do sudoeste do país, diz que sim. E insiste. Sim, tem nevado menos. O assessor acena educadamente em silêncio. Tem nevado menos.

maria.r.silva@sol.pt