Com efeito, creio não ser excessivo afirmar que assistimos a uma acelerada mudança de estatuto. ‘Cultura’ foi a palavra que designou o processo (complexa relação de fins e de meios) que conduzia o indivíduo a uma espécie de idealidade de si.
Aquilo a que chamamos ‘cultura’ condensava todas as condições que referenciavam essa idealidade concreta. Para o núcleo duro da ‘cultura’, convergiam todas as práticas simbólicas, movimento de que as artes e as letras (mas não tanto as chamadas ciências) eram, em rigor, exemplares.
A ‘cultura’ foi a mediação das mediações no sentido em que aproximava cada indivíduo do humano e fazia desse processo a condição para uma efetiva comunidade humana.
A fragmentação desse núcleo duro em novos ou reinventados horizontes de conhecimento, que se traduziu na distribuição de algumas responsabilidades ou competências, até agora reservadas à coerência unificada da cultura, por outras áreas de conhecimento (a educação, o património, o turismo, a economia), tem consequências talvez ainda só entrevistas ou suspeitadas.
Ao mesmo tempo, a brutalidade da ‘crise’ (que é muitas crises) tem uma dimensão silenciosa: a redução generalizada à imediatidade e ao fragmento, como se ‘o que acontece’ não fosse tanto mais denso quanto menos compreensível pela curta duração.
Dito de outro modo: uma leitura compreensiva do mundo contemporâneo, mesmo (ou sobretudo?) na sua mais crua exigência política, precisa, como elementos estruturantes, de tudo o que só a longa duração da geografia ou da história, por exemplo, tem para nos esclarecer.
Outro exemplo: quando algumas almas piedosas carpem mágoas pela fragilidade da ‘identidade europeia’, como se ‘identidade’ fosse um outro nome da coesão do Mercado, é oportuno lembrar que era aí, onde as consciências individuais participam de uma idealidade, que ocorria alguma coisa que a palavra ‘cultura’, precisamente, designava.
A retórica desatinada que confunde ‘pensamento’ com a repetição de palavras de passe como ‘diálogo’ e ‘inclusão’ – são ainda e só mais exemplos – é o sucedâneo pobre para uma categoria que é preciso reinventar.
Relida para além da sua versão humanista mais básica, a cultura é uma relação com o desconhecido, que nos desloca para o limiar de um mundo que não somos capazes de circunscrever.