Ricardo Paes Mamede: ‘A estratégia do Syriza foi perdedora desde o início’

É um dos economistas de esquerda com mais projecção. Ricardo Paes Mamede considera que o Governo grego devia ter preparado a saída da moeda única durante as negociações com o Eurogrupo. E pensa o mesmo de Portugal.

Acaba de publicar o livro ‘O que fazer com este país’. Que avaliação faz do desempenho recente da economia portuguesa?

Temos uma evolução típica de economias que bateram no fundo, que beneficiaram de medidas excepcionais para o sistema financeiro – neste caso do BCE – e que permitiram alguma estabilização económica. Mas continuamos numa posição extremamente frágil. O país está hoje mais endividado, mais empobrecido, mais desqualificado e com menos capacidade produtiva do que há cinco anos.

Defende uma recuperação do consumo privado para acelerar a retoma. Isso não poria as contas externas de novo em risco?

O país tem três grandes desafios em termos de política económica. Um é a consolidação das contas públicas, outro o das contas externas e por último a retoma económica, que é fundamental para que o país tenha futuro. Não vamos conseguir atingir estes três objectivos ao mesmo tempo – não há nenhum país que o consiga fazer. Defendo uma estratégia de médio-longo prazo para reequilíbrio das contas externas, mas no curto prazo devíamos dar prioridade à retoma económica. Se isso não acontecer, vai ser difícil reter capacidade produtiva no país.

A retoma não precisaria antes de mais investimento, em vez de mais consumo?

Mas a recuperação do consumo é fundamental também para o investimento. O que os inquéritos do INE mostram é que o principal motivo para a falta de investimento é a ausência de perspectivas de vendas. E isso tem uma enorme componente de mercado interno.

Com os condicionalismos orçamentais impostos pela Europa, o que pode o Estado fazer para estimular a retoma?

Não é possível relançar o consumo e o investimento privados com as metas orçamentais estabelecidas para os próximos anos, que nos obrigam a continuar em esforço de consolidação. Temos de reduzir a exigência dos objectivos orçamentais ou o esforço de pagamento de juros da dívida pública, que pesam 4,5% do PIB e 10% das despesas públicas. Sem que se faça pelo menos uma destas coisas, é impossível ter uma política orçamental que não vá obstaculizar o crescimento económico e a criação do emprego.

A Grécia deve conseguir a flexibilização de prazos e juros da dívida, com o novo acordo. Isso poderá ajudar Portugal a obter o mesmo?

É de esperar que as lideranças europeias permitam agora algum alívio marginal aos países bem comportados. Mas não tenhamos ilusões: as metas orçamentais são definidas em tratados, não se decidem num Conselho de Ministros. Não estou a ver por que motivo iria a Alemanha aceitar voltar atrás em algo que fez questão de impor no auge da crise grega. O que continua a ser-nos prometido para os próximos anos é o prolongamento da crise económica e social.

Como viu o desfecho da situação grega? O Syriza desiludiu-o?

Lamento dizê-lo, mas Alexis Tsipras seguiu desde o início uma estratégia perdedora. Ainda antes das eleições na Grécia, foi claro para mim que Tsipras acreditava piamente na possibilidade de chegar a um acordo mais favorável para a Grécia, sem que tal implicasse uma ruptura com as instituições europeias. E portanto conduziu o processo negocial excluindo qualquer outra possibilidade. Num processo negocial, quem não tem opting out fica sempre numa situação de grande fragilidade. Só poderia resultar se houvesse grandes almas generosas a negociar do outro lado, o que é óbvio que não existia.

O que poderia o Syriza ter feito de diferente?

Alguém que tenha a mínima expectativa de entrar em conflito com as instituições europeias tem de estar preparado para qualquer cenário. Independentemente de se ser favorável ou contrário à saída do euro, se não se estiver preparado para essa eventualidade a probabilidade de sucesso negocial é mínima. As forças e as instituições do outro lado são de tal forma avultadas que quem vai para um combate desses está a meter-se numa luta muito dura, que só tem o mínimo de probabilidade de sucesso se estiver devidamente armado para isso. E o Governo grego claramente não estava.

Essa opção pela saída do euro não pode colocar-se de novo, num futuro próximo?

A saída do euro vai estar em cima da mesa durante muitos anos, para a Grécia mas também para Portugal. A união monetária, na sua forma actual, não tem condições para albergar economias com estruturas produtivas tão distintas. É impossível. A única forma de o fazer seria impor custos de ajustamento de tal forma agressivos que a situação na Grécia iria multiplicar-se, com expressões políticas muito mais graves. Ou há uma transformação muito significativa do que é o euro ou então vai ter de haver uma recomposição das economias participantes do euro.

Defende então que Portugal devia preparar-se já para esse cenário?

É uma irresponsabilidade que as autoridades de política económica não tenham esse cenário preparado. Não é preciso que o anunciem – e se calhar estamos a falar e alguém já tem esse cenário preparado. Mas é uma irresponsabilidade não o ter, porque a crise na Grécia mostra que os bloqueios institucionais na Europa são de tal forma poderosos que nos conduzem a situações-limite como as que vivemos nas últimas semanas. Qualquer governo responsável, com o mínimo de noção de protecção de soberania e dos interesses colectivos do país, devia preparar-se para todos os cenários.

Como é que isso se faz?

Há uma componente que é estritamente logística. O Varoufakis [ex-ministro das Finanças grego] dizia numa entrevista que para implementar um plano de substituição de moeda tinha de mobilizar 500 pessoas e que para ter notas impressas seriam necessárias várias semanas de tipografias a funcionar. Qualquer dirigente político deveria assegurar que existem notas impressas em volume suficiente para fazer face a uma contingência com grande rapidez.

Um relatório da Comissão Europeia apresentava um cenário dramático para a Grécia, se saísse do euro: ruptura económica e social, possível guerra civil. Isso não se punha?

É difícil fazer essa avaliação. Seria preciso perceber qual a situação interna das forças armadas, da polícia. O que li é que havia alguma infiltração de forças de extrema-direita na polícia, mas que não haveria nas forças armadas – que historicamente são um sector bastante conservador na Grécia. A presença do partido de direita na coligação governamental, em que o líder do partido é ministro da Defesa, à partida poderia ser lido como um sinal de que os riscos de instabilidade estariam acautelados. Mas é difícil avaliar.

O que vai acontecer à Grécia daqui para a frente, com um novo programa?

É ainda muito cedo para perceber. Há uma mudança significativa: quebrou-se o tabu da reestruturação da dívida, e isso significa que começa a haver condições para que a Grécia não tenha de pagar o serviço da dívida durante 20 ou 30 anos. Mas o facto de não haver um corte nominal da dívida grega é muito relevante quando associado ao Tratado Orçamental, que exige a todos os países que reduzam a diferença entre o seu nível de dívida e a meta de 60% do PIB, todos os anos. Isto significa que mesmo que a Grécia não tenha de pagar juros, terá de manter saldos orçamentais elevadíssimos para cumprir o Tratado, e a única forma de fazê-lo é com austeridade permanente durante mais de uma década. Ou há alguma forma de injectar liquidez na economia grega – uma espécie de plano Marshall para pôr a economia grega a funcionar – ou então vamos ter mais do mesmo. E já sabemos qual é o resultado.

Das lutas estudantis às salas de aula

Ricardo Paes Mamede cresceu em Odivelas, uma cidade dos subúrbios de Lisboa onde a juventude ganhou fervor contestatário na década de 90. No livro O que fazer com este país, o economista recorda um país pobre – a escola primária onde estudou era um edifício “meio em ruínas” onde o tecto chegou a desabar – que começou a viver um período de crescimento, de liberalização da economia e do aparecimento em força do consumismo.

Depois de vários anos de poder cavaquista, e já em plena desaceleração económica, surgiu um rasto de descontentamento na juventude. A luta contra a Prova Geral de Acesso marcou o economista e a sua geração. Surgiu a maior vaga de movimentos estudantis desde a década de 60. “Para muitos dos que lideraram e deram a cara pelo movimento, a luta contra a PGA foi uma experiência que mudou as nossas vidas”, recorda no livro.

Foi estudar Economia para o ISEG – a mesma faculdade onde Cavaco Silva estudou. Mas na altura o ensino desta faculdade era diferente. “Quando entrei para o ISEG havia uma tradição de pensamento económico crítico, não tinha nada a ver com o que se ensinava noutras faculdades, como a Nova ou a Católica. Havia uma reflexão que tornava a economia uma ciência social, crítica”.

Discípulo de Ferreira do Amaral

Foi nesse estabelecimento de ensino que contactou com um dos economistas que mais o influenciaram: João Ferreira do Amaral, a voz que mais se opôs à entrada de Portugal na moeda única. “Na aula não se discutia a moeda única, ele não fazia proselitismo durante as aulas. Sempre foi uma pessoa incrivelmente correcta em todas as dimensões da vida. Mas fornecia uma leitura crítica, séria e rigorosa sobre a economia. Foi muito importante para a minha formação”.

Apesar de ter testemunhado o impulso do consumo em Portugal, rejeita a ideia de que os portugueses viveram acima das possibilidades. “Há uma tendência para se confundir a situação macroeconómica do país com aquilo que são os comportamentos dos indivíduos. Rejeito em absoluto explicações moralistas para uma crise que tem uma base institucional”, justifica.

Para ilustrar esta tese, socorre-se da estatística: há 60% das famílias que não têm acesso a crédito. Dos 2/5 que tiveram acesso a crédito foi sobretudo para aquisição de casa própria – e pouquíssimos entraram em incumprimento. “É possível que as pessoas não vivam acima das possibilidades e o país se encontre numa situação de acumulação de défices externos muito preocupantes”.

Ricardo Paes Mamede seguiu a carreira académica e é hoje docente no ISCTE. Escreve no blogue ‘Ladrões de Bicicletas’ e está ligado a movimentos e partidos de esquerda. Define-se como um “economista político” que segue uma linhagem em que a análise económica está enraizada numa análise social mais geral, em que o contexto histórico é crucial para interpretar a realidade, mais do que os cálculos financeiros ou complexos modelos estatísticos. “Não tenho nada por princípio contra a matemática, mas quando os economistas têm mais vergonha de não saber estatística do que não saber história, temos um problema gravíssimo para a autoridade desta ciência”.

Está assim “muito distante” das teorias e métodos que hoje dominam as faculdades de Economia do mundo inteiro. Considera que a academia é hoje “uma indústria de produzir papers e conferências” e que isso implica um “monopólio” pernicioso na forma olhar para a ciência económica. 

joao.madeira@sol.pt