Não é, porém, com a religião que ganha a vida, mas sim com um dos seus talentos. O interesse pela fotografia abstracta vem de longe – já dos tempos em que vivia em Portugal – e actualmente é mais do que um hobby, sendo uma das suas actividades. «Faço há muito tempo», diz, lembrando que já em 1989 fez uma «exposição na ilha da Madeira, no Teatro Municipal».
As suas criações não têm paisagens ou corpos. «É como uma pintura abstracta, só que é feita com luz e não com pincel», explica Frederico, admitindo que hoje em dia a arte «é mais ou menos a sua actividade principal».
Fica-se por um «mais ou menos» em muitas respostas e trava a voz sempre que o assunto resvala para o seu dia-a-dia. «O que eu faço ou deixo de fazer é da minha vida particular». O padre é contido nos detalhes do seu quotidiano.
Mas Leonor, a mãe, confirma que é do talento do filho que vem parte do rendimento lá de casa. Frederico, diz, vende as suas fotografias a particulares no Rio de Janeiro.
Em declarações ao SOL, por telefone, Frederico preferiu sublinhar que nunca foi «pedófilo» nem «assassino», rematando quase sempre: «Não há uma única prova contra mim, fui condenado por convicção do tribunal, nenhuma prova. Nem de pedofilia, nem de assassinato».
Cadastro regista apenas um furto
A vida na cidade maravilhosa não tem tido quaisquer sobressaltos, ao contrário dos últimos anos que passou na Europa. Segundo o SOL apurou, no cadastro federal brasileiro são poucos os registos que colecciona. O que mais se destaca é um furto. O cidadão Frederico Marcos da Cunha, padre, natural de Rio Grande do Norte, com residência em Copacabana, Rio de Janeiro, apresentou uma queixa em 2003 por ter sido assaltado quando estava com um amigo na praia.
Ao fim de 17 anos a viver no seu país, Frederico diz não ter dúvidas de que a sua condenação em Portugal foi típica de um regime Nazi. «Joseph Goebbels, o ministro da propaganda de Hitler que matou os filhos e a esposa e se suicidou, disse uma coisa muito interessante: ‘uma mentira muitas vezes repetida torna-se verdade, ou pelo menos aparenta ser verdade’. Foi o que aconteceu comigo», assegurou apontando o dedo aos juízes e procuradores que tiveram o seu caso em mãos: «utilizaram o método fascista».
Defende ainda que a estratégia dos magistrados contou com a cumplicidade dos jornalistas: «Não é raiva à Justiça portuguesa, é uma análise fria e racional. E a imprensa foi cúmplice desta mentira, tanto que no final do julgamento já era quase certo que seria condenado».
Em 1993 um tribunal de júri no Funchal deu como provado que, no ano anterior, Frederico atirou de uma falésia Luís Miguel, um jovem de 15 anos. Tratou-se do primeiro julgamento de um padre católico em Portugal e durou apenas três meses. Frederico negou sempre o seu envolvimento, mas acabou condenado a um cúmulo jurídico de 13 anos de prisão pelo assassinato e crimes de natureza sexual com o jovem.
Além da prisão o tribunal decidiu aplicar-lhe uma pena acessória de expulsão do território nacional e obrigá-lo a uma indemnização de oito mil euros à família da vítima. Esta nunca foi paga.
O seu afilhado, José Noite, na altura com 18 anos, também foi condenado a 15 meses de prisão por ter arranjado um falso alibi para o padrinho.
O padre brasileiro acabou preso no estabelecimento de Vale de Judeus, mas aproveitou uma saída precária, em 1998, para fugir. No dia 10 de Abril foi de carro até Espanha e, como não havia comunicação das saídas precárias aos aeroportos europeus, acabou por embarcar no Aeroporto de Barajas, Madrid, para o Brasil juntamente com a sua mãe.
Um passado negro esquecido
Hoje já não se recorda do que sentiu no dia em que a PJ o deteve no apartamento do complexo turístico da Matur, nem pensa nos anos que passou em Vale de Judeus. Mas há muitos factos que ainda lhe estão claros na memória se fizer um esforço. Continua a afirmar que não conhecia Luís Miguel e lembra vários testemunhos que fundamentam a sua tese. «Tem até uma prova contrária de um homem que vendeu sanduíche [ao Luís Miguel] muito tempo depois de eu passar por aquele local, o mesmo de onde ele caiu», diz em tom crítico.
Dessa parte do processo, o padre guarda as palavras do magistrado do Ministério Público: «O procurador disse que se essa testemunha não mudasse o seu testemunho que iria levar um processo. Ele não mudou, voltou lá e confirmou tudo de novo».
Frederico Cunha não usa meias palavras. Diz que episódios como estes provam que juiz e procurador foram «covardes» e «fascistas», mas deixa claro que a repulsa que sente não é só em relação à Justiça da Madeira, é à Justiça portuguesa no geral: «O Supremo analisou o recurso, ainda que não o tenha feito para a matéria de facto, só para a matéria de Direito. Aí, em Portugal, não havia duplo grau de jurisdição em matéria de facto como deveria haver em qualquer país democrático».
O Código Penal português determina que as penas de prisão superiores a 10 anos prescrevem vinte anos após o trânsito em julgado da sentença, mas em determinados casos pode haver interrupção ou suspensão do prazo. Contactado pelo SOL, o ex-advogado de Frederico, Romeu Francês, admite que no caso em concreto a prescrição deve acontecer em 2018. A ser assim, Frederico poderá voltar a sair do Brasil sem o perigo de ser extraditado para Portugal.
Mas o interesse inicial por saber quando prescrevia a pena rapidamente se desvaneceu: «Quando é? Bom, mas eu não pretendo sair do Brasil de forma nenhuma, quer a pena prescreva, quer não prescreva. Nem para Portugal nem para outro país».
O padre afirma já ter vivido fora do Brasil tempo suficiente, lembrando os 21 anos de Europa – desde a formação em Itália, à sua passagem pelo arquipélago da Madeira.
Não guarda apenas memórias tristes do velho continente, nem sentimentos negativos dos portugueses que deixou para trás na década de 90. Tanto Frederico como a sua mãe, Leonor – agora com 85 anos e acamada – mantêm muitos amigos em Portugal. Trocam chamadas e acompanham como podem o que se vai passando deste lado do Atlântico. Até pela televisão, o padre assina o canal SIC Internacional onde todas as noites vê as principais notícias do país.
«Guardo ainda imagens positivas do que vivi em Portugal. Há muitos amigos que ficaram e falamos com eles por telefone, nos correspondemos até por carta», diz sem querer adiantar com que pessoas ainda mantém contacto ou explicar se ainda fala com o seu afilhado.
Padre da diocese do Funchal
Frederico não quis especificar em que pastoral celebra missa porque não quer «confusões», mas admitiu não pertencer à Diocese do Rio de Janeiro. «É verdade, eu não estou ligado à Igreja Católica pelo Rio de Janeiro, a minha diocese é a Diocese do Funchal, sempre foi. Nunca mudei a minha diocese», afirmou, explicando que «só tinha de estar ligado à Diocese do Rio se fosse para uma paróquia da cidade». Já «para colaborar com uma pastoral pode ser de qualquer diocese, até internacional», esclarece.
Ao SOL, a Diocese do Funchal admitiu nunca ter expulso o padre Frederico, enquanto que a Cúria Metropolitana da Arquiodiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro afirmou desconhecer o padre.
«Não consta qualquer registro de documento autorizando o exercício do ministério (uso de Ordem) para o padre Frederico Marcos da Cunha», esclarece a nota oficial da igreja do Rio de Janeiro, onde se lê também que não resulta «após detalhada pesquisa, que o referido padre tenha celebrado em qualquer paróquia, capela ou comunidade, pertencente a esta circunscrição eclesiástica».
Igreja não abriu processo
A diocese do Funchal nunca abriu qualquer processo canónico a Frederico Cunha, nem mesmo depois de a Justiça ter condenado o padre a 13 anos de prisão por homicídio. Ou seja, nunca promoveu os necessários procedimentos para ser impedido de exercer.
Segundo fonte oficial da Diocese do Funchal, «pelo que é dado a saber de então, não existiu qualquer processo canónico, pois tudo se iniciou e decorreu no âmbito civil, com o desfecho que todos conhecemos».
Confrontada com a hipótese de o padre estar a celebrar missa no Rio de Janeiro, invocando pertencer à Diocese do Funchal, a mesma fonte afirmou desconhecer se o padre «exerce o ministério no Brasil», frisando que «se o faz, segundo a práxis pastoral da Igreja, deverá ser com a autorização da diocese respectiva».
Num segundo contacto, porém, a diocese foi mais longe: «Se continua a celebrar é a título meramente pessoal, o que aliás desconhecemos».
Independentemente de pertencer ou não à diocese onde dá missa, Frederico da Cunha continua a sentir-se o sacerdote de sempre. Vê a Igreja Católica como algo universal e até está contente com o rumo que ela está a tomar. «Dou todo o apoio ao Papa Francisco, ele está fazendo um óptimo pontificado», elogia, dizendo que o Sumo Pontífice tem colocado «muitas coisas nos eixos».
Sem fugir a um tema que lhe é particularmente sensível, dadas as suspeitas que recaíram sobre si em Portugal, o brasileiro destaca mesmo a importância que está a ser dada ao combate à pedofilia.
«Esse trabalho que tem feito contra a pedofilia é muito importante, porque os outros falavam e não faziam nada. Ele tem realmente atacado o assunto», defende. Frederico Cunha destaca um caso que considera ser um exemplo disso: «É tanto assim que até o núncio apostólico, embaixador do Papa, foi condenado. E era um bispo, não era um padre qualquer».
carlos.santos@sol.pt
Reportagem publicada na edição de 24 de Julho