De história se faz o subsolo lisboeta

Sabia que, há cerca de dois mil anos, as avenidas da Liberdade e Almirante Reis eram duas ribeiras, que confluíam até ao que é hoje o Rossio? Que aí perto estavam casas de pescadores, habitações cuja base de pedra sobreviveram até à actualidade? Que na mesma zona foram depois construídas fábricas, que produziram vários tipos…

Estes são apenas alguns dos segredos escondidos nos vários cantos da capital portuguesa. Locais e monumentos desconhecidos por muitos, nomeadamente pelos lisboetas, que circulam pela cidade sem se aperceberem do legado histórico por baixo dos seus pés.

Mas, a partir de hoje, acabaram-se as desculpas, graças a Inês Ribeiro e Raquel Policarpo, arqueólogas de 31 anos, que decidiram dar a conhecer estes marcos históricos. “As pessoas não estão à espera de encontrar, no local onde nasceram e cresceram, um sítio arqueológico. Ou de dobrarem a esquina e verem, num prédio, inscrições romanas”, explica.

Através de visitas guiadas, Inês e Raquel dão a conhecer as várias camadas históricas da capital portuguesa, mostrando vestígios arqueológicos das mais variadas épocas. Um conceito de Turismo Arqueológico com o qual Raquel se ‘cruzou’ quando esteve à procura de emprego em Inglaterra, depois de se licenciar em História pela Faculdade de Ciências Humanas da Universidade de Lisboa.

“Utilizei uma rede, para encontrar empregos lá, e acabei por descobrir várias ofertas de emprego numa empresa de Turismo Arqueológico. Foi a primeira vez que ouvi falar daquilo e fiquei fascinada”, recorda Raquel.

Ideia que conseguiu pôr em prática, em 2011, com a criação da empresa Time Travellers, em parceria com a amiga, e colega do curso de História da Faculdade de Ciências Humanas, da Universidade de Lisboa.

 “Temos vários passeios definidos: Lisboa Romana, Lisboa Islâmica, Lisboa do Terramoto, Mulheres de Lisboa, entre outros. As pessoas inscrevem-se e escolhem o passeio que querem”, afirma Inês.

Lisboa Islâmica é um dos passeios mais requisitados, tanto pelos portugueses como por muçulmanos que vêm dos quatro cantos do mundo para conhecerem esta faceta da capital portuguesa. “É um assunto que está na berra e nós mostramos o lado bom”, garante Raquel.

Apesar de grande parte dos passeios serem em Lisboa, é também possível estender as visitas a outros locais históricos do país. Os portugueses são os que mais aderem a estas iniciativas, pondo em prática a expressão ‘ir para fora cá dentro’.

“Temos também muitas escolas. Houve uma que nos pediu uma visita e, a partir daí, os professores foram passando a palavra. Fazemos jogos, peddy papers, e os miúdos adoram”, conta a arqueóloga.

E são poucos aqueles que ficam indiferentes ao que encontram. “O comentário mais frequente que ouvimos dos lisboetas é: ‘Não fazia a mínima ideia que isto estava aqui.’”, recorda Inês.

O trabalho de Inês e Raquel chegou aos ouvidos da editora Esfera dos Livros, que lhes propôs escreverem um roteiro dos vários locais arqueológicos de Lisboa. Um projecto que, em cerca de três anos, se concretizou no livro Segredos de Lisboa, já nas livrarias.

Em cerca de 200 páginas, são passados a pente fino marcos da cidade como o Castelo de São Jorge, a Sé e o Aqueduto das Águas Livres, passando por locais como o Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros e a Casa do Bicos, dando ainda a possibilidade ao leitor de imaginar edifícios que já desapareceram, como o Hospital Real de Todos-os-Santos e o Palácio dos Marqueses de Marialva, entre tantos outros. Isto sem esquecer o mais inusitado deles todos: a casa de banho do Largo da Sé. “Há pessoas que nem querem sequer lá entrar”, conta a arqueóloga.

Estas viagens no tempo são ‘acompanhadas’ de personagens fictícias como a D. Mécia, uma cozinheira, a jovem Isabel e o seu salvador, que sobreviveram ao terramoto de 1755, bem como por pessoas que existiram efectivamente, como o negociador Sempronianus, o homem que mandou erguer a Casa dos Bicos, D. Brás, e ainda um dos santos padroeiros mais acarinhados do país, Fernando Bulhão, mais conhecido por Santo António.

As autoras garantem, porém, que a obra não é um guia convencional. “As pessoas não vão usar o nosso livro pela cidade, como se fosse um mapa. Mas temos esperança que, ao lerem um capítulo,  decidam ir visitar um determinado local”, explica Raquel. “Queremos também que entendam o que vêem, seja uma porta ou uma pedra”, acrescenta Inês.

Mas serão estes todos os segredos da capital portuguesa? “Os verdadeiros segredos de Lisboa são aqueles que aparecem nas obras e que nunca ninguém vê. São investigados pelos arqueólogos, mas como as cidades têm de evoluir, são tapados e acabam por nunca chegar ao conhecimento do público”, afirma Raquel.

“Não se pode pôr o passado à frente do futuro”, conclui a arqueóloga. Aguardemos pelo dia em que possamos todos viver em sintonia.

rita.porto@sol.pt