A obscena degradação da linguagem, regredindo até níveis troglodíticos, para qualificar os actuais fenómenos da imigração em massa, está longe de ser um exclusivo de Cameron. O multimilionário americano Donald Trump chegou a qualificar de “assassinos” e “violadores” os imigrantes que procuram penetrar nos Estados Unidos através da fronteira com o México. Ora, apesar dos protestos que suscitou, Trump é hoje o candidato da direita americana às presidenciais de 2016 mais popular nas sondagens.
Quanto mais trogloditas, mais populares: eis uma tendência crescente nos inquéritos de opinião, especialmente nos países onde a direita mais radical e xenófoba vai ganhando os favores do eleitorado ou onde ela já governa.
É o caso da Hungria, cujo primeiro-ministro, Viktor Orbán, mandou construir um muro de quatro metros de altura ao longo da fronteira com a Sérvia para impedir a ‘invasão estrangeira’. Não por acaso, o Governo de Orbán já se tinha distinguido pela repressão da liberdade de expressão e imprensa no seu país, afrontando as normas vigentes na União Europeia mas sem sofrer nenhum castigo ou advertência consequente das entidades comunitárias por causa disso.
A histeria xenófoba é muitas vezes cega às realidades estatísticas da imigração. Por exemplo, o Reino Unido recebe duas vezes menos pedidos de asilo do que a França e seis vezes menos do que a Alemanha. Mas o complexo de fortaleza assediada, em fase de agudização um pouco por toda a Europa, é vivido de forma particularmente intensa no Reino Unido devido a outro complexo suplementar: o da insularidade.
Ainda marcados pela nostalgia dos tempos de um império que ultrapassava as fronteiras mais próximas e se estendia por quase todos os continentes, os britânicos nunca se sentiram verdadeiramente integrados na Europa. Sob a pressão da concorrência do UKIP – o partido eurofóbico e anti-imigração de Nigel Farage –, Cameron pretende cavalgar a onda e ameaça com um referendo que poderá conduzir à saída do Reino Unido da União Europeia.
Pouco importa, para já, que essa estratégia de vistas curtas possa ser desastrosa para ambas as partes. Cameron e uma parte considerável dos líderes europeus – nomeadamente o francês Hollande, assustado com o crescimento da Frente Nacional, também eurofóbica e anti-imigração – agem motivados pelo medo e, passo a passo, é o medo que vai gangrenando os valores civilizacionais da Europa.
Creio que foi o socialista francês Michel Rocard quem afirmou um dia, aliás com inteira razão, que a Europa não tinha condições para acolher toda a miséria do mundo. Só que a Europa nunca foi capaz de organizar-se para responder, no quadro das suas capacidades, ao apelo que despertava entre os deserdados e perseguidos políticos das suas fronteiras mais próximas ou mais distantes.
Essa falência é um dos sintomas da crise generalizada que a Europa hoje enfrenta, no plano económico, político – e militar. Nem é capaz sequer de cumprir os serviços mínimos, pela falta de empenho em fornecer meios de vigilância das suas costas ou a impotência para impedir a morte de milhares de migrantes – este ano foram já mais de dois mil e, só na passada quarta-feira, mais outras centenas.
A Europa já não é o destino próspero e tolerante de há duas ou três décadas atrás. Mas a situação nas fronteiras do Mediterrâneo tornou-se um verdadeiro inferno ao qual a Europa tem insistido em fechar os olhos – incapaz de (re)agir concertadamente enquanto a “praga” da desgraça humana cresce sem parar.
Mas que Europa é esta, afinal, onde nem a palavra compaixão sobrevive na retórica troglodita do salve-se quem puder, enquanto seres humanos são reduzidos a gado – ameaçados de morrer no mar, assaltados por cães ou fechados dentro de cercas?
