É uma valise, não dramatize

A televisão tem a capacidade de conseguir que o telespectador se alheie do que o rodeia e se concentre na emissão, seja ela ficcional ou não. Em bom rigor tudo o que acontece na televisão é ficção, mas não é por aí que quero explorar hoje o tema. É a força aglomeradora, distribuidora e capaz…

Para mim a diferença essencial entre a televisão e o teatro é o grau de importância dos gestos; se no teatro aparece uma mala em cena, essa mala é o início de um mistério; se aparecer, na televisão, uma mala, a conversa é outra, porque o mistério também é outro, e muito mais normalizado, normativo e normalizante. Até porque normalmente essas coisas são adereços das personagens, e isso nunca se constitui de grande interesse para o telespectador, que está sempre a ser informado sobre os mistérios através dos núcleos paralelos de personagens – fácil.

No teatro, uma mala é sempre trazida com grande esforço físico, há sempre uma necessidade de demonstração simbólica acrescida, porque mesmo que os outros núcleos de personagens tenham facilitado ao público a narrativa do objecto, a partilha do espaço físico implica uma interacção diferente entre objectos e personagens.

Acompanho séries de ficção televisivas e pergunto-me muitas vezes porque é que as malas andam sempre vazias? Poderia dizer injustamente que este era um problema da ficção nacional, mas constato que é um problema alargado a uma boa fatia da ficção que chega ao pequeno ecrã. Porquê? Não sei se me interessa muito o porquê, porque acho que é mais interessante gargalhar um pouco sobre algumas malas vazias que tenho encontrado no meu ecrã.

Visto em ficção muito recentemente: um casal que vive junto. A mulher anuncia que vai sair de casa. Corta para a entrada da mulher em casa dos pais. A mãe levanta-se do sofá espantada com a presença da filha e de uma enorme mala de viagem. Vazia. A mulher anuncia à mãe que se separou e que tirou as suas coisas do espaço que dividia com o cônjuge. Não só transporta uma enorme mala de viagem vazia, como a transporta leve, breve, suave, como a face dessa mala está amolgada. O telespectador não questiona. E a trama segue.

Um homem de meia-idade e parcos recursos vai partir para uma nova etapa da sua vida. Aguarda a chegada de companheiros perante um aglomerado de amigos e familiares que lhe desejam boa sorte. Chegam os companheiros e o homem agarra em todos os seus pertences, divididos em três malas diferentes mais uma mariconera, e iça tudo aquilo por cima do décor atravancado com a mestria de um actor que resolve a cena num take e a ligeireza de quem transporta três volumes vazios, apenas capazes de sublinhar, pelo aspecto pitoresco, a baixa condição do homem. O telespectador não questiona. E a trama segue.

Quando numa manhã muito fria de Janeiro, D. Dinis lhe perguntou o que levava no regaço, D. Isabel de Aragão ter-lhe-á respondido que no regaço levava rosas. D. Dinis desconfiou de um regaço carregado de rosas em Janeiro, e D. Isabel terá soltado a bainha arregaçada do vestido, inicialmente carregado de pão que habitualmente distribuía pelos pobres, e diz-se que a carga se transformou em rosas.

Se já no século XIV um homem sensato era capaz de desconfiar de cargas ocultas em meios de transporte não convencionais, porque raio não hão-de desconfiar os telespectadores da ficção nacional dessas mesmas cargas?

trashedia.com