É neste ambiente em que os rapazes agem espontaneamente, sem filtro, que se vê até que ponto praticam o que aprenderam nos últimos dias. Neste Campanário, campo de férias vocacional organizado pelo Patriarcado de Lisboa, 50 jovens vieram fazer actividades lúdicas mas também rezar e ouvir falar de Deus, de ajuda ao próximo. Perceber se o seu caminho passa por ser padre. Os dias passados no Seminário de Penafirme, em Torres Vedras, são uma experiência única para cada um tentar escutar a vocação que Deus escolheu para si, explicam os animadores do campo. Cabe-lhes a eles ajudar os rapazes neste processo: analisar as suas características, conversar, observar interacções. Em tudo, até no futebol.
Neste Campanário não se pergunta aos rapazes de 14, 15 e 16 anos se querem ser padres. “O caminho vocacional faz-se passo a passo”, explica o padre Rui de Jesus. Nunca se fazem convites para chegar a um destino final mas para dobrar uma esquina, uma de cada vez”. O convite pode ser uma proposta concreta para entrar no Seminário Menor (para rapazes dos 15 aos 18) ou apenas para vir a uma actividade de Verão.
O mergulho na praia é a parte mais animada de um dia cheio, que começa cedo, inclui trabalho social, catequese, missa e, claro, espaço para pausas e refeições. Os jovens vieram de toda a diocese de Lisboa para participar neste Campanário, um dos três que se realizam ao longo do ano para acompanhar os que estão em discernimento vocacional. O grupo é heterogéneo:cerca de 30 vieram pela primeira vez, ou participam apenas nos encontros de Natal, Páscoa e Verão, os outros 20 vão mensalmente às actividades do Pré-Seminário, serviço do Patriarcado que acompanha os rapazes do 7.º ao 12.º ano de forma sistemática.
Vieram desafiados por um amigo, padre ou catequista ou até pelos pais que acreditam que têm uma vocação especial. Uns têm vivência religiosa em casa ou na paróquia, outros vêm mais pelo convívio, sem saber bem o que vão encontrar. Este Verão há até um rapaz não baptizado. “Sem comunidade não há cristianismo. Por isso, podem ainda não perceber muito bem a dimensão da fé mas percebem a do grupo”, explica o responsável do Pré-Seminário, Rui de Jesus.
Dias cheios
Miguel tem 15 anos e já veio a três campanários de Verão “aprender mais sobre Deus mas também participar em actividades lúdicas”. O desafio veio da boca de um seminarista no dia em que foi com a catequese conhecer o Seminário de Penafirme. É acompanhado durante o ano pelos padres do Pré-Seminário para tentar “perceber qual a vocação”. Deixa o futuro em aberto: “Não prometo ser padre mas também não prometo não ser. É uma possibilidade”, afirma, descontraído, após um mergulho na Praia de Santa Cruz. Aceitaria entrar no seminário se fosse desafiado?, perguntamos. “Podia pensar nisso”, responde, sem medo.
Neste campo, Miguel está a gostar especialmente do trabalho social embora também goste de campanários noutro formato, como em peregrinação. De manhã, os rapazes estão no Centro Social Paroquial Nossa Senhora da Luz a ajudar os idosos, fazendo-lhes companhia, jogando às cartas, conversando. Outros idosos são visitados em sua casa pelos jovens. “Hoje até rezámos o terço. A D. Maria disse-nos que reza todos os dias mas connosco é diferente”, conta Miguel, de olhar visivelmente satisfeito e a voz rouca do jogo da noite anterior.
Hoje há missa no lar para assinalar os 90 anos de uma utente, por isso os padres e seminaristas foram buscar os idosos a casa. “O mais importante na vida recebemos de graça”, sublinha o padre Rui na homilia da missa, referindo-se “à fé, ao amor, às amizades construídas nestes dias de convívio”.
Depois do almoço na instituição, os jovens regressam ao seminário. É tempo de descanso, de tocar viola, cantar, jogar pingue-pongue ou apanhar sol no pátio. À tarde, o trabalho é mais espiritual. Reúnem-se em salas, separados por idades, para ouvir a catequese dada por João, Marcos, Bruno e Pedro, seminaristas que já estão no Seminário dos Olivais, a poucos anos de serem padres.
Na aula de João usa-se a Bíblia para ler a carta de São Paulo que fala de justiça e misericórdia. “Há sectores injustos na vida. Como podemos ser misericordiosos?”, pergunta o seminarista aos rapazes, para depois dar a resposta: “Ser misericordioso é não esperar receber algo em troca”. E se um professor nos dá uma nota injusta, rebate um rapaz, tentando arrancar da palavra de Deus ensinamentos para o dia-a-dia. O seminarista que orienta a sessão lança mais dicas: “Quem desprezamos no grupo de amigos e precisamos de ajudar?”.
A sessão segue animada até que dois jovens começam a falar alto, a atirar alcunhas um ao outro. “Então vocês ouviram falar de misericórdia e não aprenderam nada?”, atira um terceiro, pondo ordem na discussão.
Desafio concreto a cada rapaz
Os padres que acompanham o Pré-Seminário e os animadores mais velhos aproveitam a tranquilidade da casa para descansar e pôr tarefas em dia. À noite ficarão a fazer serão porque aproxima-se o último dia do campo e é preciso tomar decisões. “Amanhã vamos falar individualmente com todos e fazer uma proposta a cada um”, explica Rui de Jesus, apresentando as hipóteses em cima da mesa: voltar no campanário do próximo Verão ou no Natal, ou entrar para o Pré-Seminário para um acompanhamento mais regular.
“O Pré-Seminário não é para os bem-comportados mas para os que desejam aprofundar a relação com Deus. Podem ainda não ter uma inquietação mas têm um desejo de escutar Deus”, explica o responsável deste sector, acrescentando que é raro virem a um campanário em Julho e entrarem no Pré-Seminário logo em Setembro. A resposta não tem de ser dada já amanhã, até porque muitos jovens querem antes falar com a família. Os pais recebem depois uma carta com a apresentação do projecto e se o filho aceitar vir comprometem-se a levá-lo mensalmente às actividades em Penafirme.
O padre Rui explica que a vocação implica sempre dois aspectos: o chamamento de Deus e a resposta de quem é chamado. “Às vezes acham que a vocação é algo que sentem no coração, um sentimento, uma coisa exterior como a vontade de servir os outros. Mas não é só isso. O chamamento é uma palavra concreta que ouvem da Igreja”, diz Rui de Jesus. Esse desafio é lançado de forma clara pelos padres que acompanham os rapazes. “Podemos enganar-nos. Mas não chamamos para serem padres mas para fazerem um caminho vocacional”.
Os dias do Campanário servem para aferir a vontade de trilhar este caminho. A vida comunitária é uma preciosa chave de leitura. Quem só gosta de brincadeira, é conflituoso e não aproveita a oração para esta escuta divina poderá estar bem noutro campo de férias. Mas não num campanário, pois aqui “gostar de cá estar não é suficiente”.
“Fazemos contratos por um ano”, diz Rui de Jesus, explicando que os casos são analisados anualmente. Quem fica de fora deste convite para o Pré-Seminário não leva um “não” mas “um sim a outra coisa”, pois ainda precisa de aprofundar dimensões da sua vida, explica. Por exemplo: recuperar um chumbo na escola, entrar na catequese, resolver uma situação familiar. “Alguns não estão preparados para vir já. Têm de dar sinais de querer pôr-se a caminho”.
Viver no Seminário Menor aos 16 anos
Os que foram desafiados a dar um passo mais à frente deste percurso até ao sacerdócio – entrar no Seminário de Penafirme – já tiveram o seu chamamento na Páscoa. Foram convidados seis, dois aceitaram. Sair de casa e ir viver só com jovens em discernimento vocacional é uma decisão difícil que só pode ser tomada no 10º ano. E é muitas vezes é “um abalo para os pais”.
Um dos que aceitaram entrar está no Pré-Seminário há três anos e já tinha sido convidado duas vezes. O outro só esteve um ano no Pré mas como já vinha com interpelações vocacionais a entrada foi mais rápida.
Há quem não entre porque a família não quer. Nesses casos, propõe-se continuar a ser acompanhado no exterior e, se ainda o desejar, entrar no Seminário Maior de São José, em Caparide, já com 18 anos. “Tem de haver harmonia com a família. Se não, estão aqui em sofrimento”, explica Rui de Jesus afirmando que a separação é por vezes mais dolorosa para pais do que filhos.
Reflectir se o futuro passa pelo sacerdócio implica serenidade e cortar com o mundo, explica quem já fez este caminho. No seminário de Penafirme não há telemóveis, internet, e os jovens só vão a casa uma vez por mês, embora possam sempre falar com a família. Neste enorme edifício de corredores largos e tectos altos o ambiente propicia o recolhimento. Os estudos são feitos no Externato de Penafirme, ali paredes meias.
No final do ano lectivo passado, dos 11 pré-seminaristas que aqui estavam, cinco seguiram em frente e deixam agora o Seminário Menor para entrar no Seminário Maior de São José, onde farão os três primeiros anos de formação: um ano propedêutico de integração na vida da casa e dois já a frequentar a licenciatura de Teologia. Dos outros, três regressam à família e dois mantêm-se em Penafirme.
Candidatos que vêm de fora têm acompanhamento especial
Há vantagens e desvantagens em fazer o percurso todo: Pré-Seminário, Seminário Menor e depois Seminário Maior. Mas esta tem sido uma realidade da diocese de Lisboa: nos últimos 30 anos, 40% dos padres ordenados vieram do Pré-Seminário, 30% dos quais passaram pela experiência de Penafirme. Cada caso é um caso, sublinham os orientadores vocacionais.
Regra geral, os pré-seminaristas que daí vêm têm a dimensão vocacional mais trabalhada, bem como a vida comunitária mais oleada. Mas quem vem de fora pode ter uma maturidade maior, devido à idade. Contudo, algumas vivências que trazem (afectivas, profissionais, até sexuais) podem dificultar a adaptação ao seminário, explica o padre José Miguel Pereira, director deste serviço do Patriarcado.
O seminário conta com o apoio de uma psicóloga para fazer a triagem e acompanhar as situações mais complexas e para descartar debilidades psicológicas.
O tempo é de escassez de vocações, com consequências graves na falta de sacerdotes em muitas dioceses, também em Lisboa. Mas ninguém entra no seminário indo lá bater à porta. Os maiores de 18 anos que já trabalham ou estudam são acompanhados pelo sector de animação vocacional no grupo ‘terças.com’ e têm uma direcção espiritual, explica José Miguel Pereira. “Muitos já vão a meio do curso ou estão frustrados no trabalho e sentem que lhes falta algo. Se têm uma relação eclesial, a fé pode ser a porta para ir à procura”, explica o também reitor do Seminário dos Olivais (onde os seminaristas fazem os últimos estudos). “Mas não basta vir à procura por desencanto”, diz o sacerdote.
“Aparecem candidatos sem consistência vocacional: muito convictos e decididos mas pouco disponíveis para ser homens de Igreja, alguns no limite da depressão”, afirma o reitor dos Olivais, sublinhando que aos padres exige-se um amor gratuito, total e universal.
“O celibato não se resume a uma abstinência sexual, mas é uma radicalidade na relação com Deus e uma universalidade na relação com os outros”. Se não procuram isso, exemplifica, “é como querer casar e não ter capacidade para construir uma vida a dois”.
Até serem ordenados padres (sete anos no mínimo), e através da vida em comunidade e do acompanhamento espiritual, os seminaristas fazem este caminho de discernimento. Se não têm vocação saem ou são convidados a sair. Muitos ficam pelo caminho.