Enquanto o mundo levava as mãos à cabeça com as bolsas em descalabro, na ‘segunda-feira negra’ desta semana, a televisão pública chinesa estava noutra onda hertziana. Passava imagens do Presidente Xi Jinping a visitar o Tibete, numa visita oficial em 1998, e emitia uma reportagem sobre os preparativos de uma parada militar.
Por mais que a China adopte práticas de mercado e o capitalismo popular nas praças financeiras, o poder está nas mãos do Partido Comunista – que não aprecia referências à desaceleração económica do país.
A queda nas bolsas foi relegada para segundo plano nos órgãos de informação oficiais, e as poucas notícias que surgiram atribuíam a responsabilidade do colapso bolsista a factores externos.
Num país como a China, uma crise na bolsa não é apenas um evento de mercado. Segundo relatos publicados esta semana no Financial Times, os corredores políticos em Pequim estão num grau de alerta elevado. E a censura aos órgãos de comunicação e nas redes sociais durante a crise das bolsas desta semana é reveladora da preocupação das autoridades.
Entre os responsáveis do partido, escreveu o diário, «o tópico de conversação mais quente» é se o primeiro-ministro Li Keqiang será sacrificado. Ou seja, se terá de assumir a responsabilidade pela turbulência financeira das últimas semanas e pelas mal sucedidas intervenções do Governo para acalmar os mercados. O PM é visto como potencial «bode expiatório» do regime, já que foi um dos arquitectos do desastrado plano de estabilização das bolsas em Julho – a negociação de mais de mil acções de empresas foi suspensa, o que só assustou ainda mais os investidores.
Não é normal que decisões drásticas a este nível, na cúpula da liderança, aconteçam de um momento para o outro. Pequim costuma privilegiar a manutenção da harmonia, pelo que os próximos passos também são uma incógnita. Tanto a nível político como económico.
Mudança de modelo
Segundo os analistas, o Partido Comunista Chinês e as autoridades locais parecem estar a ter dificuldades em lidar com uma mudança estrutural na economia: a passagem para um modelo menos baseado em investimento massivo e exportações, e mais sustentando na procura interna.
Ser um país com 1,3 mil milhões de habitantes ajuda a concretizar essa estratégia. E se as autoridades estão preocupadas com a economia, como escrevia quarta-feira o colunista do Financial Times Martin Wolf, já os chineses parecem manter os seus hábitos de consumo. Apesar da turbulência que tem catapultado o gigante asiático para as manchetes dos media ocidentais.
«Estou em Chengdu, no Oeste da China, e vejo as ruas, as lojas, os restaurantes cheios. O ambiente é até esfuziante», relata Virgínia Trigo, professora universitária e coordenadora de programas do ISCTE na China.
A investigadora especializada em questões chinesas sublinha que «já há algum tempo que a China reconhece que existem limites ao modelo assente no investimento e nas exportações e que começa a pensar no abrandamento do crescimento». Tem-se assistido a uma viragem para os serviços e para a produção de alta tecnologia, por exemplo. Nessa mudança «é natural que exista um abrandamento», enfatiza. É o «novo normal» de que falavam os líderes do Governo há uns meses.
Mas, sendo a segunda economia do mundo, as fragilidades que experimente acabam por reflectir-se globalmente. Daí o pânico que se instalou esta semana – dos emergentes às potências.
«A China é o maior consumidor mundial de matérias-primas e qualquer abrandamento vai afectar os países que a fornecem. Ao mesmo tempo é um grande importador de equipamentos da Europa, sobretudo da Alemanha, e, com a diminuição da procura, é natural que a Europa também venha a sofrer», resume Virgínia Trigo.
Um cocktail arriscado
A China é um paradoxo. O Presidente chama a si cada vez mais poderes do controlo sobre o Estado – criou estruturas paragovernamentais, nomeadas pelo seu gabinete, para controlar a actuação dos organismos públicos -, mas a liberalização dos serviços financeiros, o acesso mais fácil a crédito e a emergência da classe média fazem com que as famílias consumam cada vez mais e até invistam na bolsa.
Este cocktail de desaceleração económica, bolha de endividamento e especulação nas bolsas esteve na base de uma das semanas mais negras nos mercados financeiros, com níveis de stress semelhantes aos vividos quando o banco Lehman Brothers faliu, há sete anos.
Numa ‘segunda-feira negra’ nos mercados financeiros, quase nenhuma bolsa escapou à turbulência com origem na China. A praça de Xangai abriu o caminho – devido ao fuso horário termina pouco antes de se iniciar a negociação na Europa – e encerrou em forte queda. A principal praça chinesa fechou a cair 8,49% nesse dia, a maior queda em oito anos. O contágio foi imediato na Ásia: Tóquio caiu 4,6% e Hong Kong 5,17%. Seguiu-se a Europa, e Portugal não escapou ao efeito dominó. A praça lisboeta fechou esse dia a perder 5,8%, com todas as 18 acções que compõem o PSI-20 a desvalorizar. Em conjunto, a capitalização bolsista das empresas cotadas em Lisboa desvalorizou 3,1 mil milhões de euros.
Autoridades actuam
A agitação bolsista na Europa acalmou nos dias seguintes, mas o receio dos investidores é ainda evidente – e a cada dia que passa são conhecidas novas consequências da turbulência financeira asiática.
As autoridades chinesas têm tentado conter os efeitos da crise financeira, com pouco sucesso. O banco central da China anunciou esta semana uma redução das taxas de juro – a quinta desde Novembro – e reduziu ainda mais os rácios das reservas obrigatórias dos bancos. Além disso, injectou 150 mil milhões de renminbi (cerca de 20,3 mil milhões de euros) no sistema financeiro do país.
Estas medidas servem para facilitar o crédito e fazer com haja dinheiro a circular, de forma a animar a economia e conter as quedas nas bolsas – mas não estão a conseguir afastar o sentimento de receio nos mercados.
E o sentimento do mercado é de que Pequim denota inabilidade em lidar com crises financeiras. «O Governo chinês decidiu adoptar várias medidas que vão contra aquilo que são as economias do mercado, nomeadamente, impedir a venda de acções por detentores de mais de 5% do capital. Isso acabou de lançar pânico nas economias ocidentais, cuja regulação não responde da mesma forma que o Governo chinês», explica ao SOL o presidente da associação de investidores ATM, Octávio Viana.