E, no entanto, a globalização era então uma palavra por inventar, estávamos muito longe do império da informática e da internet, não existiam telemóveis e as inovações tecnológicas que entretanto se massificaram ainda pairavam no segredo dos deuses.
A acção de O Eclipse decorre em Roma, num Verão quente e luminoso, entre uma moderna periferia residencial preservada do bulício urbano e o movimento efervescente da Bolsa, no centro histórico da cidade, onde se faziam e desfaziam fortunas ao sabor dos caprichos inexplicáveis de uma abstracção chamada dinheiro.
Apesar do ambiente quase provinciano da Bolsa romana – se pensarmos em Wall Street ou noutras praças financeiras dos nossos dias -, Antonioni captava a electricidade irracional dos comportamentos nesse cenário, conjugando-a com as obsessões recorrentes na sua obra: a alienação dos sentimentos num mundo esvaziado de sentido e a dificuldade de comunicação entre os seres humanos – particularmente, a dificuldade de amar.
Se, apesar da distância do tempo e das coisas, O Eclipse me parece hoje um filme verdadeiramente profético é porque a sensação transmitida por esse mundo esvaziado de sentido e mergulhado no absurdo se tornou ainda mais premente do que há 50 anos.
A globalização tornou-se irreversível, inelutável, mas o optimismo beato que suscitou na sua fase heróica vê-se cada vez mais confrontado com uma face negra emergindo da caixa dos prodígios.
E quando constatamos que um país como a China, segunda maior economia mundial, é o epicentro do terramoto financeiro ocorrido esta semana, vemo-nos duplamente desafiados pela vertigem dos paradoxos e do absurdo a que chegámos.
A China é governada por um partido único, de matriz assumidamente comunista e totalitária, mas foi-se tornando ao longo das últimas décadas a mais poderosa força motriz de um capitalismo selvagem e a economia emergente com taxas de crescimento mais elevadas do mundo, chegando a pôr em causa a tradicional supremacia americana.
Em vez de se ter verificado uma abertura democrática da sociedade, preconizada pelos teóricos clássicos do casamento inevitável entre capitalismo e democracia, o regime chinês fez prosperar uma oligarquia corrupta cuja voracidade provocou um ainda maior endurecimento da ditadura do Estado, em nome do combate a essa deriva.
Ora, foi a China que Portugal e outros países europeus – sobretudo alguns mais afectados pela crise – elegeram para parcerias estratégicas e venda de empresas, nomeadamente no sector público ou nas áreas da energia, seguros e banca. As chamadas privatizações tiveram assim, por irónico destino, alguns expoentes do capitalismo de Estado chinês…
Precisamente, entre os mais atingidos pelo sismo bolsista desta semana estavam alguns dos nossos conhecidos parceiros chineses e um candidato à compra do Novo Banco. Sem esquecer que, na última segunda-feira negra, 3 mil milhões de euros se evaporaram da Bolsa de Lisboa, com perdas de 1,6 mil milhões para a EDP, Galp e Jerónimo Martins.
O crash da Bolsa de Xangai, contagiando as suas congéneres globais, nada teve, porém, de verdadeiramente surpreendente, se tivermos em conta a natureza e a dinâmica perversas do capitalismo chinês. Ninguém quis ver que o milagre económico da China tinha pés de barro – e que, para manter-se, precisava de taxas de crescimento estratosféricas acima dos 7 por cento, enquanto a Europa arrasta os pés para ultrapassar o crescimento zero…
O FMI e o BCE bem tentaram pôr água na fervura, separando a febre bolsista do estado de saúde da economia global. Mas essa é uma ilusão perigosa: à custa de procurar evitar o pânico, fecham-se os olhos à nudez crua da verdade que tenderá a impor-se por força da globalização.
Há um antes e um depois desta semana negra, que confirmou uma vertigem anunciada desde o início do mês. É a voracidade do capitalismo financeiro e especulativo que está em causa.
Não por acaso, o crash bolsista coincidiu com o agravamento da crise migratória na Europa. O eclipse da consciência europeia, ao varrer para debaixo do tapete um drama cada vez mais explosivo, é simétrico do eclipse de um planeta financeiro desgovernado.