Frequentemente considerada uma mulher inflexível, dogmática e demasiado ciosa da superioridade germânica, habituada a impor a sua vontade a uma Europa dividida, submissa e em crise prolongada, implacável na aplicação da austeridade aos países em situação económica mais débil – dos quais a Grécia é o caso extremo -, Merkel acabaria por revelar uma face humana porventura inesperada e gratificante para o orgulho europeu, como sublinhou o insuspeito Le Monde.
Mas ouviram-se também vozes a insinuar que esse sobressalto de humanidade da chanceler não era, afinal, estranho ao lado mais conhecido da sua personalidade. Sendo a Alemanha o país europeu com maior défice demográfico, a atitude compadecida e acolhedora de Merkel em relação aos refugiados refletiria um mero sentido de oportunidade: eles traziam uma força de trabalho, em parte qualificada, que permitiria assegurar os níveis de moderação salarial e competitividade da economia alemã.
Ora, bastaram menos de duas semanas para que as considerações suscitadas pelo gesto humanitário (ou simplesmente pragmático) de Merkel fossem ultrapassadas pelos acontecimentos. Estimulados pelos sinais de hospitalidade que os fizeram olhar para a Alemanha como o eldorado europeu, os migrantes engrossaram o movimento naquela direção, tentando furar a todo o custo as barreiras que, a partir da Hungria, eram levantadas a um êxodo de proporções quase bíblicas.
Sucedeu então a reviravolta da chanceler. Bem vindos, ontem, os migrantes passaram subitamente à condição de quase indesejados, quando a Alemanha – logo seguida por outros Estados europeus – decidiu suspender provisoriamente a circulação no espaço Schengen. Não eram as muralhas de arame farpado dos xenófobos de Budapeste, mas essa reposição das fronteiras, depois das expectativas criadas, revelou-se uma desilusão terrivelmente cruel para os candidatos ao asilo.
O impulso humanitário (ou calculista, conforme as opiniões) de Merkel não resistiu à volatilidade política, mediática ou da opinião pública alemã e à avassaladora pressão migratória. Por outro lado, a fragmentação explosiva da Europa – a mais grave desde o início da União – soou também como um dobre a finados para o voluntarismo germânico.
É certo que a Alemanha não poderá aguentar sozinha a miséria do mundo que aflui às suas portas – e o fardo do acolhimento terá de ser repartido pelo conjunto dos países europeus, em larga medida evasivos ou hostis a esse sacrifício, como se confirmou na reunião desta semana para debater a proposta de Juncker sobre as quotas de migrantes relativas a cada país.
Mas quando Merkel avançou com o seu gesto de acolhimento, esse processo já estava em marcha com a chegada de massas crescentes de refugiados, ao mesmo tempo que se acentuava a xenofobia de países como a Hungria, a Eslováquia ou a Polónia, os tais que a Europa se apressou a integrar e, agora, a ameaçam de desintegração.
Como explicar então a mudança de atitude de Merkel num prazo tão curto – arriscando-se até a justificar o arsenal securitário do húngaro Órban? As suas próprias vistas curtas? A falta de estratégia que tanto critica à Europa desunida? Além disso, Merkel parece habitada por uma dupla personalidade, dividida entre a má-consciência alemã face ao passado nazi e a boa-consciência em que finalmente se recolhe para atribuir aos outros a culpa por ter mudado de opinião em menos de quinze dias.
Apesar de todas as diferenças óbvias que os separam – e que separam Portugal da Alemanha -, a dupla personalidade é algo que parece comum a Merkel e ao seu discípulo Passos Coelho. Se pensarmos na forma como Passos se apressou a desejar a vinda da troika – conforme consta da sua carta a Sócrates revelada esta semana pelo Público – ou no modo como tenta lavar as mãos de responsabilidades no caso BES/Novo Banco, o seu comportamento é marcado pela dissimulação e a duplicidade.
As culpas são sempre dos outros – e cabe aos outros expiar o pecado de sermos ultrapassados pelos acontecimentos. É a falta de estratégia inerente às vistas curtas.