Deste então, não parei de ler e reler esta epopeia e as suas múltiplas recriações e de admirar Ulisses polymetis e polymechanos, homem de muitos ofícios e de muitas artes, o mais fino dos gregos e o mais humano dos humanos.
Foi também a pensar em Ulisses que neste Verão naveguei pelo mar Egeu, de ilha para ilha, ao sol e ao vento que foram também dele e dos seus companheiros no regresso de Tróia; que acordei nas enseadas onde os «dedos rosados e vermelhos da Aurora» surpreendem navios fundeados e mareantes adormecidos; e fui olhando aquelas ilhas, ora verdes ora secas e rochosas, com cidadezinhas arrumadas em socalco sobre os portos, uma ruína de templo pagão numa colina, com uma capelinha ortodoxa solitária num cabeço.
Nas cidades, encontrei uma normalidade que contrasta com as imagens incendiárias de um país à beira do abismo: lojas e restaurantes cheios de turistas, cafés com marinheiros reformados ou pescadores velhos a jogar às cartas; os ATM a funcionarem sem dificuldade, os cartões de crédito aceites, embora o cash dê direito a ‘uma atenção’, como em todo o lado.
Sempre que estou na Grécia – e fora dela – faço a mesma pergunta: serão estes gregos modernos descendentes dos gregos antigos? É que entretanto – entre a morte de Alexandre, a batalha de Actium, o império de Bizâncio, a dominação turca e a guerra de independência que comoveu a Europa cristã há quase 200 anos -, aconteceu muita coisa.
É a independência, conquistada com a tenacidade e a brutalidade que exigia um dominador tenaz e brutal, que marca a identidade da Grécia moderna. Mas para a conseguir foram precisas a coragem e a astúcia dos heróis fundadores.
O bávaro Fallmerayer (1790-1861) foi o mais categórico negador dessa continuidade: «A raça dos helenos» – escreveu – «foi varrida na Europa. Beleza física, brilho intelectual, harmonia e simplicidade naturais, arte, competição, cidade, aldeia, o esplendor da coluna e do templo – na verdade até o nome desapareceu da superfície do continente grego… Nem a mais leve gota de puro-sangue helénico corre nas veias da população cristã da Grécia de hoje».
Contra Fallmerayer, os historiadores gregos Spyridon Zambelios (1815-1881) e Konstantinos Paparrigòpoulos (1815-1891) vieram sustentar a tese da continuidade identitária.
Certo é que os gregos modernos – no massacre de Messolonghi, na mal sucedida guerra de 1919-1922, na resistência do fascista Metaxas ao ultimato fascista italiano, na invasão alemã, na guerra civil – nunca deixaram de recorrer, ora à fúria de Aquiles ora à astúcia de Ulisses.