Era um artesão do que fazia, indiferente ao dinheiro e a bens materiais, símbolo de uma ética. Sem ligar também a graus académicos, apesar de ter sido muito bom aluno, Vitor Silva Tavares cultivava mais a ideia do ‘Mestre’ que passa ensinamentos. Como despesas extras, teve o vício do tabaco (um maço e meio por dia) e os copos (chegou a enfrentar um problema próximo do alcoolismo, que no entanto resolveria sozinho).
Completamente frugal, vivia na Madragoa, numa casa muito modesta herdada da avó, na Rua das Madres, e ia depois a pé para a editora, com sede na Rua da Emenda, ao Chiado. Os seus autores não esperavam pagamentos, porque sabiam que ele também gastava o mínimo consigo.
Ultimamente, usava a barba branca aparada, como o cabelo. Mas, em novo, chegou a tê-la mais comprida. Quando partiu para Angola, em 1959, com 22 anos, era a época dos rebeldes de esquerda barbudos (como Fidel Castro, que acabara de fazer a revolução em Cuba). Ele, tirando uma passagem juvenil e muito pragmática pela Mocidade Portuguesa, onde chegou a comandante de Castelo (para comer bem e usufruir de boas instalações vizinhas à casa da Madragoa), foi um opositor da ditadura e acabou por ser uma espécie de compagnon de route do PCP, sem nunca ser capaz de aderir realmente a um partido que lhe parecia pouco democrático, e do qual se separaria totalmente nos últimos tempos. Tinha uma linguagem vernácula, mas sem palavrões (que a própria avó, varina da Madragoa, lhe ensinara a não dizer), e falava num tom suave (por mais cortantes que fossem as asserções).
Nasceu na Madragoa, muito ligado à família da mãe. A avó, não apenas varina, também cozia redes de pesca (a família viera de Olhão, e dedicava-se ao peixe) ou era lavadeira de roupa. Descrevia o pai como um gentleman, de olho azul, embarcadiço e a estudar máquinas, e a mãe como uma Ana Magnani (bela atriz italiana, célebre nos anos 40 e 50), a comporem um casal muito estético. Os pais não eram casados quando ele nasceu, nem a avó nunca casara. Às vezes, a mãe, para estar mais com o pai (ausente), deixava-o dias seguidos com instruções para tratar da casa e do irmão mais novo (o que lhe terá dado desde cedo grande autonomia).
Era um pé descalço, que calçou os primeiros sapatos quando entrou no colégio (privado, na Lapa, porque os oficiais não quiseram aceitar o filho de pais não casados). Ainda deu largas à capacidade de bom aluno no liceu Pedro Nunes.
A primeira namorada, do Conservatório, levou-o a emigrar em 1959 para Angola, com o sonho de fazer documentários. Teve de trabalhar e, indo parar à Junta das Estradas, viu-se inspetor de condução, sem nunca ter guiado). Depois, foi em Benguela que começou a vida de jornalista. Mas, como depressa se ligaria politicamente a sectores de esquerda (com amizades escaldantes no MPLA), viu-se obrigado a regressar a Lisboa em 1962.
Ateu, desenvencilhava-se a pintar (talvez pelo que gostava de artes plásticas) e explorou o nicho de Cristos para conventos (que um marchand colocava no mercado). E ia andando pelos jornais.
O saber-se da sua cultura levou os então proprietários da Ulisseia, a empresa vinícola José Maria da Fonseca, a convidarem-no para diretor da editora, e a aceitarem as suas exigentes condições. Pensou ele que a Ulisseia era usada para disfarçar lucros, e atirou-se à publicação de marginais (conseguiu ser amigo até ao fim de dois dos portugueses de pior feitio: Luiz Pacheco e João César Monteiro).
No Artes & Letras ou na Flama publicara crítica de cinema, outro campo que o interessou, e chegou a editar o suplemento cultural do Diário de Lisboa. Mas terá sido na Ulisseia que conheceu José Cardoso Pires, companheiro de cigarros e copos, o qual o levaria para o Jornal do Fundão. Ali criaria o & etc, primeiro como magazine semanal, mais tarde independentizado.
A editora & etc surgiria em 1974. Na sua editora (cujos livros, mais de trezentos editados, são hoje obras para bibliófilos), tinha cuidados extremos de artesão: desde o formato peculiar (15,5cm por 17,5 cm, eram livros quase quadrados), à cozedura à mão ou ao grafismo. As tiragens eram mínimas (500 exemplares seriam já um best seller), e só fez uma única reedição: a de O Bispo de Beja, de Homem-Pessoa, apreendido em 1980 pelo Ministério Público, com os exemplares queima- dos no Tribunal da Boa Hora.
Teve a sua obra poética lançada, em Fevereiro deste ano, pelas Edições 50kg. Gostava de dizer que tinha sido editor por acaso. Na realidade, era cinéfilo, amante e praticante das artes plásticas, uma espécie de renascentista.