Uma estrela na vida de Rossellini

Ingrid Bergman escreveu em 1948, no auge da sua carreira e fama – após Casablanca, de Michael Curtiz, e após Notorious, de Alfred Hitchcock – uma carta a oferecer os seus préstimos. A carta era dirigida a Roberto Rossellini, o realizador italiano, já então figura de proa do neorrealismo de uma Europa convalescente da guerra. …

Ingrid Bergman escreveu em 1948, no auge da sua carreira e fama – após Casablanca, de Michael Curtiz, e após Notorious, de Alfred Hitchcock – uma carta a oferecer os seus préstimos. A carta era dirigida a Roberto Rossellini, o realizador italiano, já então figura de proa do neorrealismo de uma Europa convalescente da guerra.  Nela, Ingrid manifestava o apreço por Paisá e Roma, Cidade Aberta e oferecia-se para participar no projeto artístico do italiano, tão diferente dos grandes filmes de estúdio que faziam da beldade sueca a maior atriz norte-americana, como a definia o produtor David O. Selznick.

Desta carta, não tão inocente assim – Ingrid invocava numa espécie de currículo que falava bem inglês, sueco e alemão, mas que em italiano só conseguia dizer ti amo – nasceu um escândalo, três filhos e quatro filmes.

Na carta, Rossellini vê a oportunidade de dar um novo rumo ao seu cinema cujo vigor assentava na autenticidade de usar atores não profissionais para contar histórias cruas, atuais e trágicas em cenários  reais. Agora teria uma estrela à escala mundial. Bergman é ‘raptada’ de Hollywood, para um período que seria uma nova fase da sua carreira, e também uma viragem na sua vida pessoal. Rosselini adapta Stromboli, filme que estava programado para a atriz e sua amante Anna Magnani, e dá-o a Ingrid.

Depois da inesquecível e glamorosa Ilse Lundt de Casablanca, Ingrid será a atormentada Karen, que para fugir a um campo de prisioneiros casara com um pescador de uma aldeia pobre na ilha ensombrada pelo vulcão. Um papel terra-a-terra desesperado, sem o esplendor que a atriz conhecera junto à costa do Pacífico. O papel de uma estranha, numa comunidade conservadora que não a aceita, e que seria um reflexo do que se aproximava na sua vida.

Ainda cada um casado com os respetivos, Ingrid dá à luz Robertino. Da união do casal nasceriam ainda as gémeas Isabella (futura musa da Lancôme) e  Isotta. O escândalo foi tremendo, o casal seria condenado pelo Vaticano e Ingrid apelidada de ‘péssimo exemplo de feminilidade’ e impedida de voltar aos EUA, onde deixara – além do primeiro marido, o médico sueco Petter Lindström – a filha, Pia, que não veria durante anos.

Como a vida imita o cinema, em Viagem a Itália – filmado em 1954, tal como O Medo – um casal de estrangeiros, que visita Nápoles para vender uma propriedade herdada, discute a possibilidade de enfrentarem o divórcio. Ingrid e Roberto estavam também cada vez mais distantes, pressionados pelo escândalo à volta deles e do insucesso do trabalho do realizador e, também, pela difícil relação de Rossellini com a equipa de filmagens: o argumento ia sendo reescrito à medida que se avançava e o realizador preferia não dar instruções aos atores, deixando que eles próprios descobrissem a verdade interior das suas personagens.

O casamento entre Ingrid e Roberto duraria sete anos difíceis, até 1957, o tempo para juntos fazerem quatro filmes, cujo sucesso comercial também não foi imediato, mas que fazem hoje parte do património cinematográfico universal. E são esses quatro filmes, o belíssimo Stromboli, Europa 51, Viagem a Itália e O Medo que agora, no ano em que Ingrid Bergman faria 100 anos (morreu exactamente a 29 de agosto de 1982, no dia em que completou 67 anos, qautro meses após protagonizar a primeira ministra israelita Golda Meir), que a Leopardo Filmes põe à venda, numa edição de colecionador disponível a partir de 15 de Outubro.  Os filmes são apresentados em versões restauradas e com extras que incluem comentários do crítico italiano e professor de História do Cinema Adriano Àpra e uma masterclass do realizador português António-Pedro Vasconcelos.

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