Reportando-se ao envio de uma informação anónima, através de uma caixa com a figura de Eusébio e uma réplica da camisola do Benfica que o 'Pantera Negra' vestiu nos anos 60 e 70, o presidente do Sporting indiciou que as aludidas ofertas e jantares visariam obter benefícios em campo, e desta forma suscetíveis de se poder adulterar a verdade desportiva das competições.
Na sequência das cáusticas acusações do presidente leonino, o presidente da Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol (APAF), José Fontelas Gomes, desafiou Bruno de Carvalho a provar o que disse na TVI24, mas esclareceu que as ofertas do Benfica cumprem as indicações da UEFA. Como se sabe, segundo o ponto 6 do Artigo 4º do Código de Ética da UEFA, cada árbitro pode receber prendas no valor de aproximadamente 200 francos suíços, cerca de 183 euros.
Afirma José Fontelas Gomes: "Os árbitros seguem escrupulosamente aquilo que é o Código de Ética instituído pela UEFA, nem mais nem menos. Tenho a certeza que nenhum árbitro utilizou esses convites e a oferta de camisolas é comum em toda a Europa". O presidente da APAF explicou ainda que os árbitros, se virem "algo que não se enquadre dentro desses parâmetros, devem reportá-lo às autoridades competentes e no relatório de jogo".
Entretanto, a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) comunicou publicamente que pediu a intervenção do Ministério Público para verificar se existem ilícitos de foro criminal.
Para culminar a sequência factual, regista-se ainda que oBenfica, através do seu presidente Luís Filipe Vieira, pediu aos adeptos que "vão ignorando tudo" sobre esta matéria, porque "no dia certo e à hora certa" o clube saberá "ajustar contas", deixando a resposta devida para momento ulterior.
E por fim, sobretudo, e de forma negativa, regista-se também o silêncio da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP), que apenas é a entidade que, de acordo com a lei, é responsável pela gestão e regulamentação do futebol profissional, e que não se demonstrou disponível para comentar um assunto do qual, pela sua eventual gravidade, mais tarde ou mais cedo, não poderá continuar a alhear-se.
Face ao exposto, é preciso esclarecer o leitor que aquilo que está verdadeiramente em causa com a referida denúncia do presidente Bruno de Carvalho é ‘somente’ saber se as referidas ofertas aos árbitros são aquilo que na gíria desportiva se designa por meras ‘ofertas de cortesia’ ou se estamos perante factos muito mais graves, que se podem subsumir à eventual aplicação do art. 62º do Regulamento Disciplinar da Liga, cuja epígrafe consiste em “Corrupção da equipa de arbitragem”.
Deste modo, esta situação, em primeiro lugar, denuncia uma grave lacuna regulamentar sobre aquilo que deve ser considerado como mera ‘oferta de cortesia’, não tendo o intérprete outro recurso senão a aplicação subsidiária das normas do Código de Ética da UEFA.
Em segundo lugar, esclareça-se também que esta matéria não é ‘virgem’ na Justiça Desportiva, tendo surgido de forma mais notória e popular nos processos de inquérito e disciplinares do assombroso e sempre atual processo “Apito Final”. Aliás, para os mais esquecidos, há que recordar, na altura (época desportiva 2007/2008), a existência de um inquérito disciplinar contra o Benfica, relativamente a determinadas ofertas de cortesia, entretanto arquivado.
Desde essa altura, ficou mais ou menos assente na Justiça Desportiva nacional que entende-se por oferta de cortesia aquela que corresponde a uma praxe social desportiva de carácter generalizado e indiferenciado, que se traduz na entrega de meras recordações por parte de um clube a um árbitro e/ou outros agentes desportivos que intervêm nas suas partidas, sem quaisquer indícios de solicitação de atuação parcial na competição.
Assim, esclareça-se o leitor que não basta a verificação de eventuais ofertas aos árbitros, ainda que, eventualmente, ligeiramente superiores a 183 euros, para que o ilícito disciplinar e criminal de corrupção passiva (também previsto na Lei n.º 50/2007, de 31 de Agosto, que estabelece o Regime de Responsabilidade Penal por Comportamentos Antidesportivos) automaticamente se verifique.
Na modalidade de corrupção passiva, plasmada no referido regime de combate à corrupção no fenómeno desportivo, considera-se típica a conduta do agente desportivo que solicita ou aceita, sem que lhe seja devida, vantagem (patrimonial ou não patrimonial) ou a sua promessa, para um qualquer ato ou omissão destinados a alterar ou falsear o resultado de uma competição desportiva.
No meu entendimento, este delito desportivo específico constitui um delito material ou de resultado. O resultado – lesão do bem jurídico – é o elemento do tipo de ilícito, que se verifica com a solicitação/aceitação, logo que a proposta chegue ao conhecimento do destinatário. Assim, não se pune uma mera atividade ou um perigo presumido; pune-se, sim, um determinado resultado desportivo obtido de forma ilícita. Resultado esse que nada tem que ver com a prática de um ato ou omissão por parte do agente desportivo, mas sim com o momento em que as vontades, dos agentes passivo e ativo, se encontram. Assim, na presente situação, para além da necessidade de se demonstrar que as ofertas não são meramente de cortesia, falta provar o nexo de causalidade entre estas e os resultados desportivos verificados nos jogos disputados pelo Benfica nas diversas competições desportivas em que participou.
Julgo que está na hora das entidades responsáveis pela justiça desportiva da LPFP e FPF, com o eventual auxílio do Ministério Público e da APAF, procederem ao esclarecimento cabal da situação, e clarificarem em definitivo sobre a natureza, pressupostos e, sobretudo, limites das denominadas ‘ofertas de cortesia’, para de uma vez por todas terminarem com o clima de suspeição sobre os árbitros e sobre o futebol nacional.
O futebol português, como se viu no fim de semana, tem muito mais do que isto para nos oferecer.