As conspirações do sínodo explicadas por um vaticanista

O Papa a falar de conspiração, cartas privadas que saltam para os jornais com críticas ao funcionamento do Sínodo, tweets que dizem mais do que muitas conferências de imprensa. O Vaticano está ao rubro, com a realização do Sínodo dos Bispos sobre a Família, reunião magna de bispos e cardeais que não deixará a Igreja…

Como está a ver este Sínodo dos Bispos sobre a Família, em que o próprio Papa fala de conspiração (segundo post colocado no Tweeter por um dos participantes), há cartas privadas que saltam para os jornais?

Há sempre melodramas em encontros como este. Em parte porque há muitos temas, muitas pessoas presentes e de todo o mundo, e é difícil para os jornalistas perceberem a história toda, qual a nota.

Mas estamos a falar de situações inéditas, nomeadamente de uma carta privada escrita por um grupo de cardeais ao Papa a pôr em causa o modo de funcionamento do sínodo…

Sim. E quando acontece um melodrama como esse, então é o ideal. Mas penso que não se devia exagerar porque esta carta representa apenas um grupo de cardeais que estão muito preocupados com o tema dos divorciados recasados. Essa ansiedade faz com que vejam tudo através de uma certa ótica e digam, por exemplo, que o novo formato do sínodo pretende inclinar o resultado para um determinado lado. O que eu não acho.

Mas há uma carta…

Há uma carta, foi confirmado que havia uma carta mas não é a mesma que o vaticanista Sandro Magister publicou. No final ninguém sabe como lhe chegou, porque chegou. São os leaks do Vaticano…

Houve também um sacerdote da Congregação para a Doutrina da Fé a assumir a sua homossexualidade nas vésperas do Sínodo, e a denunciar a existência de um grupo para tentar derrubar Francisco. O próprio Papa usou o termo conspiração…

O Papa usou o termo conspiração depois de receber esta carta. Quando falou no segundo dia do Sínodo, foi uma grande surpresa porque esperávamos que falasse apenas no início e no final. Agora sabemos porquê. Foi uma resposta a essa carta e a um discurso especifico do cardeal Pell. O que o Papa estava a dizer é que não se devia olhar para o Sínodo através de uma lente de conspiração, que não é real, e que não ajuda. Francisco disse ainda outras duas coisas que são muito importantes: que o Sínodo não está a questionar a doutrina católica, é um sínodo pastoral, cuja finalidade é a aplicação pastoral do ensino da igreja. E ainda que ainda que não se pode reduzir todo o sínodo ao tema da comunhão dos divorciados.

Maioria está disposta a dar maior abertura aos divorciados recasados, “sempre que isso não afete a doutrina da indissolubilidade do matrimónio”

Este tema, qualquer que seja a posição do Papa, já esta a fazer uma fratura grande na Igreja?

Não acho que seja uma fratura. Há uma diferença de opinião grande, mas não é uma divisão entre os que estão a favor e os que estão contra. A maioria dos padres sinodais está disposta a explorar esta possibilidade de abertura aos divorciados recasados, sempre que isso não afete a doutrina da indissolubilidade do matrimónio. Os que estão a favor disto, agora estão a falar de uma faculdade que se pode dar ao bispo, de analisar caso por caso, quando há a certeza moral de que nunca existiu o matrimónio. Nos casos em que a vida legal da anulação não é possível, estão a pedir que o bispo possa ter essa faculdade. Mas estamos sempre a falar de um número muito pequeno de pessoas. Ninguém neste sínodo está a falar de um caminho geral para os divorciados.

Mesmo nesses casos específicos e pontuais, para a ala mais conservadora do sínodo, isso não é visto como uma forma de por em causa a doutrina?

Essa é a questão. Nos casos em que há o poder legal de perceber que não há matrimónio, é simples. Nos outros, os que estão contra dizem que isto na prática é impossível. Vai conduzir a um divórcio e haverá confusão sobre a forma como a Igreja pensa.

Isso não causará um cisma?

Não falaria de um cisma, de uma fractura. Porque estamos a falar de grupo pequeno: entre os 270 padres sinodais, os “rigoristas”, que estão muito preocupados com esta discussão, não passam de 25. Além disso, há outra questão que está a emergir, principalmente nos nestes últimos dias, que é se esta questão não deveria ser devolvida às igrejas locais. Por exemplo, os alemães que são o grupo mais a favor da abertura, dizem que essa questão não pode ser resolvida ao nível da igreja universal mas que se devia permitir que as igrejas locais decidissem. É preciso perceber que há muitas questões pastorais. E o que dizem alguns bispos europeus e latino americanos é: como podemos falar de desafio pastoral da poligamia se esta é uma questão muito africana? Tal como para os africanos não é sequer aceitável falar dos homossexuais, enquanto que para os europeus é uma realidade contemporânea.

Sínodo discute agora hipótese de “devolver questões polémicas às igrejas locais”; rigoristas dizem que “conduzirá a diluição da Igreja”

Esta via pode ser um caminho a seguir até ao final do sínodo?

Sim. Tem havido mais de 20 intervenções nos últimos dias a favor de devolver estas questões à igreja local. A questão foi levantada por um cardeal latino-americano e muito bem aceite Se isto aparecesse no documento final seria muito interessante, porque conduziria ao aparecimento de novas estruturas colegiais.

E o Papa será a favor disso?

Eu acho que sim, que está a favor de uma maior colegialidade e flexibilidade pastoral. Mas seriam sempre pressupostos da aplicação pastoral, porque as questões doutrinais continuariam a ser universais. Mas os que estão contra, os chamados rigoristas, dizem que tudo isto vai conduzir necessariamente a uma diluição da igreja sobre as questões doutrinais e não se pode separar as duas coisas: a doutrina da aplicação pastoral. Na pratica, é a mesma coisa.

Sobre o acesso dos divorciados à comunhão, o Papa vai dizer sim ou não?

Acho que não vai fazer isso. É preciso perceber que o processo do sínodo é complexo. O instrumentum laboris (documento que serve de base de trabalho) está dividido em três capítulos e em cada semana os grupos pequenos estão a trabalhar e a propor emendas a este texto. No final, um grupo de 10 cardeais vai receber todas as sugestões de alteração e incorporar no documento final. E ninguém sabe o que vai acontecer ao documento final. O Papa pode querer que seja privado e decidir não publicar. Ou então, como fez no ano passado, decidir publicar, com as votações e tudo. Ele tem o poder de decidir tudo.

Onde entra a opinião do Papa?

Ele tem que tomar as decisões da estratégia pastoral da igreja quanto a estas questões. Se vê que existe consenso em torno de uma direção, vai acreditar que tem um mandato para conduzir a Igreja nesse caminho. Se vê que há uma divisão grande no sínodo pode acreditar que não pode avançar, e que isto deve ser devolvido e decidido a nível regional. O importante é perceber que o Papa é que decide, o Sínodo não decide nada. Mas ele considera um sínodo como um processo de discernimento eclesial e criou as condições para isso: falar com liberdade, grau de privacidade, escutar bem, rezar.

Mas a sua opinião pessoal será também tida em conta neste processo?

O importante não é o que pensa o Papa. Ele vai olhar para o processo e resultado do sínodo, e se achar que há um consenso, uma vontade de Deus, isso dá-lhe coragem para avançar sobre este caminho.

Há o risco de nem todos virem a ser leais ao Papa

Há o risco de algumas pessoas continuarem a defender a sua posição e não o que o Papa decidir?

Totalmente.

Não vão respeitar se for uma posição que não concordam?

Em teoria, são todos católicos e leais ao Papa…. No final… não sei. Depende do que o Papa disser. Mas é um risco. Eles estão muito firmes na sua convicção de que não se pode mudar esta questão dos recasados. Se existir um consenso do sínodo, no sentido de abrir, não sei o que farão.

Estando nesse grupo de rigoristas o cardeal Muller, como fica a Congregação para a Doutrina da Fé (CDF)?

Ficará a mesma. Já é assim desde Bento XVI.

Há um grupo dentro da CDF a querer derrubar o Papa, como se diz?

Não acredito. Há muita variedade de pensamento sobre isso. Outro cardeal que está neste grupo de rigoristas é o cardeal Pell, responsável pelos assuntos económicos do Vaticano, e que é uma nomeação já deste Papa. E que está agora no secretariado do sínodo. Por isso, não se pode analisar isto ao nível das pessoas que estão contra e a favor do Papa. São lógicas que existem no mesmo corpo. O cardeal Muller (que terá assinado a tal carta ao Papa) usa a expressão Vatileaks (uma alusão ao caso do Pontificado de Bento XVI em que documentos privados foram dados à imprensa por um mordomo). Isso prova que na Cúria Romana existe um grupo de pessoas, oficiais, não empregados, que entregam estes documentos privados aos jornalistas. O facto de ser o cardeal Pell afetado é significativo porque ele fez várias reformas na Cúria que têm afetado alguns interesses financeiros no Vaticano. Foi uma maneira de o desacreditar. O certo é que os cardeais que fizeram esse documento estão furiosos por ele ter sido revelado. Para eles era uma comunicação privada que nem mesmo a assembleia do sínodo sabia. Foi uma violação da privacidade muito grave mas muito típica do que já acontecia no pontificado de Bento XVI.

Nada de novo, portanto?

Algumas coisas têm mudado. Mas esta mudança um projeto de longo termo.

“Como deve a Igreja tratar as pessoas que casaram nos últimos 20 anos, no pressuposto de que sabiam o que estavam a fazer, mas tinham uma mentalidade divorcista?”

Acha que o Papa está arrependido de ter aberto a discussão a este nível?

Acho que não, que ele acredita que o processo do sínodo tem funcionado muito bem. E eu também. Os que estão dentro dizem que o ambiente é sereno, que os cardeais têm discutido de forma construtiva e criativa. Dizem que é como no Concílio Vaticano II, que se respira um ar fresco. O que dá a impressão de que a ideia que tem passado cá para fora não corresponde ao que se tem passado lá dentro.

Acha que, na prática, há muita confusão entre os católicos sobre o que vale e não vale?

São questões muito complicadas, teologicamente e doutrinais. Os media focam a questão dos divorciados mas o factor mais importante que tem conduzido a esta reflexão é o colapso da sociedade ocidental, do apoio na cultura e na lei do conceito cristão do casamento. Isto tem muitas implicações. Não é suficiente hoje que um católico entre no matrimónio com três horas de preparação porque a cultura tem afectado a forma como os católicos pensam. É preciso uma preparação muito mais profunda. Se o sínodo aceitar isso, e eu acredito que isso vai ser um dos resultados, vai ser uma mudança substancial na Igreja. A segunda questão é como a Igreja devia tratar as pessoas que se casaram nos últimos 20 anos, no pressuposto de que sabiam o que estavam a fazer, mas, na realidade, tinham uma mentalidade divorcista. Significa que muitos, talvez a maioria desses matrimónios que não têm funcionado, não sejam válidos. O que vamos fazer a estas pessoas? Dizer que é uma grande pena que não estejam na Igreja ou vamos dizer, como quer o Papa, venham e vamos analisar esse matrimónio? A reforma do processo de nulidade dos casamentos foi um passo muito importante e já é um dos frutos do sínodo. Mas há pessoas que têm experimentado uma conversão enorme e para quem a via legal da nulidade não é possível. Eu diria que a maioria dos padres sinodais acha que a Igreja devia fazer alguma coisa para estas pessoas.

“A igreja é uma ilha que não tem o apoio da cultura e da lei na sua visão do casamento”

Não é possível deixar tudo como está?

A tela de fundo é muito grande. A questão da comunhão é apenas um dos momentos. Mas o mais importante é a Igreja já ter a noção de que é uma ilha e que não tem o apoio da cultura e da lei nesta visão do casamento. E os padres sinodais estão muito conscientes disto.

O que vai a Igreja fazer?

Uma analogia pode ser o que aconteceu no século 16, quando a Igreja decidiu começar a preparar as pessoas para serem padres. Criaram-se seminários, pois não havia qualificação e formação. Penso que isso pode ser comparado com a fase actual, da necessidade de criar uma formação para resgatar o matrimónio e a família na sociedade ocidental. E a partir daí prestar um serviço a toda a sociedade. Uma ideia transversal aqui é que a família é a célula base da sociedade, quando a família é fraca, a democracia, a política e a economia são fracas.

rita.carvalho@sol.pt