Gidske Anderson, a então líder do Comité (falecida em 1993), falou de um “evento histórico” num momento em que o mundo já começava “a sentir os proveitos de uma nova relação” entre os “dois poderosos blocos”. Em Outubro de 1990 mais do que os efeitos práticos da transformação da União Soviética sentiam-se os efeitos da esperança criada por Gorbachov: “Hoje é possível, talvez pela primeira vez em várias centenas de anos, imaginar uma Europa dos povos e, esperamos nós, também uma Europa em paz”.
“Raramente o Comité se sentiu mais sintonizado com os desejos de Alfred Nobel" do que em 1990, referiu Anderson já depois de lembrar que o sueco deixara no seu testamento o desejo de ver premiado com o Nobel da Paz alguém que “tenha trabalhado para promover a fraternidade entre nações”. No mesmo testemunho, o Comité Nobel dizia “entender que a URSS passa por um período dramático de transformação dentro das suas fronteiras: a ditadura deve ser substituída pela democracia, a centralização pelo direito de cada república à auto-determinação, uma economia de comando pelo mercado livre. Uma transformação que inevitavelmente será um processo doloroso, que incluirá grandes sacrifícios”.
Cientes dos custos que Gorbachov teria de pagar para a Rússia sofrer todas essas transformações, os cinco membros do Comité terminavam assim a sua declaração: “Tem sido dito que atribuir o prémio deste ano ao Presidente da URSS é uma decisão corajosa. A nossa coragem é, porém, nada comparada com a coragem demonstrada por Mikhail Gorbachov quando iniciou esta jornada”.
Sendo um facto que a Europa e as duas grandes potências envolvidas na Guerra Fria passaram depois por um longo período de acalmia, também o é que a situação voltou a deteriorar-se nos últimos anos, nomeadamente nas grandes conquistas antecipadas pelo Nobel de 1990. E Gorbachov não deixou de tentar influenciar o rumo dos acontecimentos, apesar da veterania.
A nível interno, foi durante algum tempo umas das principais vozes críticas do poder absoluto acumulado por Vladimir Putin, o homem que desde 2000 lidera os destinos do seu país, com um interregno de quatro anos em que ocupou o cargo de primeiro-ministro. Em 2013, quando Putin reagiu ao aparecimento de contestação nas ruas com uma onda de detenções e repressões a opositores, Gorbachov recorreu à britânica BBC para denunciar “um ataque aos direitos de cidadania”. Na altura deixou um recado ao seu sucessor, dizendo a Putin que este “não deve ter medo do seu próprio povo”, pois o que este “espera do seu Presidente é que reinicie um diálogo direto e aberto com ele”.
No plano externo, Gorbachov também não deixou de criticar a tensão crescente entre as duas potências face à crise ucraniana. Aos 84 anos, aceitou receber a Time no seu escritório da Fundação Gorbachov em Moscovo para declarar que o mundo está “de facto a viver uma nova Guerra Fria”. Pior: “As pessoas já começaram a falar não de uma nova Guerra Fria mas de uma bem quente”. Aí mostrou-se mais solidário com a ação de Putin, dizendo que a decisão deste em anexar a região ucraniana da Crimeia foi “uma posição que defende os interesses da maioria”.
E não hesitou em apontar o dedo à atuação dos Estados Unidos, que responsabilizou até pelo regresso do autoritarismo à Rússia. Após o fim da Guerra fria, o Ocidente “tentou tornar a Rússia numa espécie de província”, numa “situação em que as pessoas dizem o que quer e impõe as limitações” do país. “São os Estados Unidos a decidir tudo”, lamentou: “O controlo manual do autoritarismo foi necessário para ultrapassar a situação que os nossos amigos, os nossos antigos amigos e aliados, criaram à Rússia tentando deixá-la fora da geopolítica”.