O campeão nacional de xadrez aceitou o convite para dar uma ‘lição’ na redação do SOL e, no final dos 12 jogos que disputou em simultâneo, ainda fez mais dois sem olhar para o tabuleiro – às cegas, como se diz na gíria da modalidade. Sentado de costas para a mesa, perna cruzada e mão na cabeça, limitou-se a ouvir as jogadas dos adversários e a enunciar as suas. O resultado foi igual.
Há duas semanas, com a conquista do seu 14.º título nacional, António Fernandes estabeleceu um novo recorde, ultrapassando os 13 de Joaquim Durão. Aos 52 anos, é o campeão mais velho da história do xadrez em Portugal, assim como também é o mais novo desde que foi o melhor em 1980, com 17 anos.
Iniciou-se aos sete, numa ida à terra Natal, Pampilhosa da Serra. Viu o pai e os dois irmãos mais velhos a folhear uma revista de xadrez e sentiu-se excluído. “Ele estava a ensiná-los e a deixar-me de fora. Fiz birra”, conta, divertido.
De volta a Lisboa, obrigou o pai a ensinar-lhe os movimentos das peças e no primeiro torneio, a nível distrital, ganhou. A família Fernandes foi então convidada para representar o Benfica e o pai, Júlio, não segurou por muito tempo o estatuto de número um do clube. António, o benjamim lá de casa, destronou-o com 11 anos. “Era a única criança a jogar com adultos”, recorda, à distância de quatro décadas.
Pelo feito, o Benfica ofereceu-lhe uma viagem para assistir às Olimpíadas de Nice, onde o pai, três vezes vice-campeão nacional, representaria a Seleção portuguesa. Nas deslocações ao estrangeiro, Júlio perguntava aos Grandes Mestres de outras latitudes sobre o melhor treino para o filho e diziam-lhe para começar por estudar os finais de jogo em detrimento das aberturas.
Naquela viagem a França, a partida entre um dos portugueses e um israelita parecia empatada. Num intervalo, os dois concordaram nesse sentido, mas António Fernandes furou a barreira de segurança e aproximou-se. Andava a ler sobre finais de jogo com torres, como o que tinha à frente, e explicou-lhes que a vitória estava ao alcance do seu compatriota mais velho. “Está no livro que tenho no hotel”, atirou, enquanto movia as peças a exemplificar. Resultado: “O israelita correu comigo do recinto e o nosso jogador acabou por ganhar”.
Logo nesse ano, António Fernandes sagrou-se vice-campeão nacional de juniores. Um miúdo de 11 anos a ombrear com os sub-20 antecipava-lhe um futuro risonho, mas ninguém arriscaria que aos 15 chegasse a vice-campeão nacional absoluto e que aos 17 reclamasse o título. Até porque dos 12 aos 14 desligou-se dos tabuleiros para privilegiar “jogar à bola e à carica na rua”.
Catorze títulos de campeão depois, convocámos para o testar administradores, o diretor, jornalistas, gráficos, repórteres fotográficos e o departamento de marketing. E como reforço ‘contratámos’ Nuno Andrade, vencedor do passatempo do SOL ao acertar no autor da frase “o xadrez é uma guerra em cima do tabuleiro e o objetivo é esmagar a mente do adversário”.
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Natural de Santo Tirso, presidente da Associação de Xadrez do Porto e jogador do Grupo Desportivo Dias Ferreira (vice-campeão nacional por equipas), Nuno, de 23 anos, diz que não sabia a resposta, mas “pelo estilo só podia ser do Bobby Fischer”. Correto. São palavras do norte-americano, herói da Guerra Fria por ter quebrado o domínio russo no xadrez em 1972 – num jogo contra Boris Spassky que a propaganda política transformou numa disputa para ver de que lado estavam as mentes mais brilhantes.
Nem o reforço de peso nos salvou, apesar de ter sido quem deu mais trabalho ao campeão português. A nossa estratégia falhou em toda a linha. Houve quem tivesse jogado duas vezes seguidas ou trocado a posição das peças enquanto António Fernandes fazia a ronda pelos outros tabuleiros, mas os três ou quatro segundos que demorava em cada ‘paragem’ eram suficientes para detetar as trapaças e lançar-nos mais uma uma armadilha. Uma luta animada mas desigual, foi o que pudemos oferecer, nada comparável às exigências de um torneio a sério. Nesses, é certo que emagrece.
“Chego a perder um quilo em alguns jogos, as calças ficam sempre largas no fim. Um estudo concluiu que o xadrez é o segundo desporto mais stressante, a seguir à Fórmula 1. Há 32 peças paradas no tabuleiro, mas na nossa cabeça elas estão todas em movimento”, retrata, para lembrar que não é aconselhável a pessoas com problemas de coração: “Já morreram jogadores por paragem cardíaca, dois deles nas últimas Olimpíadas. Há momentos em que o nosso coração dispara”.
Na visita desta semana ao SOL, é capaz de não ter acontecido. Nem quando um dos nossos festejava pequenas vitórias morais a cada xeque ao rei do campeão nacional. Cinco, no total.
Batalha ao segundo lance
Ao longo da carreira, António Fernandes pôde constatar o acerto da célebre frase de Fischer. Mas nenhuma batalha psicológica terá sido tão precoce como a que travou um dia com José Pinheiro.
Depois do fazer o primeiro lance, esperava que o adversário reagisse “com uma das duas jogadas que fazia sempre”. Pinheiro ousou outra. “Foi como se me tivesse dado um murro no estômago”, solta António Fernandes, que não se tinha preparado para aquela abertura “porque ele nunca a tinha jogado”.
Pôs-se a pensar no que o rival andara a estudar e demorou uma ‘eternidade’ a decidir o seu segundo lance. Ao fim de 15 minutos, ripostou com uma abertura que raramente utilizava. “Deixou-o 15 minutos a pensar e com isso revelou que também não se tinha preparado para aquilo. A primeira guerra estava ganha”. Acabaria por vencer a partida.
Como Bobby Fischer, uma das suas referências, António Fernandes foge à teoria sempre que pode. É conhecido por preferir a criatividade e por isso sempre perdeu muito tempo na fase inicial, à procura da sequência perfeita. Um “erro crónico” que o deixa em apuros de tempo com bastante frequência.
O adversário chega a ter mais de uma hora para jogar quando sobram segundos a António Fernandes. “Numa dessas vezes deu-me vontade de ir à casa de banho e não me podia levantar. A partida estava ganha mas precisava de jogar logo a seguir ao meu opositor”. Nessa fase dos jogos é habitual já ter tudo previsto, pois o tempo que gasta antes é usado a pensar nas múltiplas respostas possíveis às jogadas que faz.
“O estudo dos finais de jogo a que me dediquei desde criança dá uma visão de longevidade. É normal os grandes xadrezistas anteciparem muitas jogadas. Eu consigo ver umas 10 ou 15 à frente em cada variante que analiso”, explica este profissional da equipa de informática do BPI, onde trabalha desde que concluiu o curso de matemática aplicada, em 1989.
Hoje, apesar de ser campeão nacional, diz que não dedica “tempo nenhum” ao xadrez, a não ser “para preparar um torneio que seja mais competitivo”. Estuda os adversários e pouco mais. “A minha ambição era ser profissional para tentar o top mundial, mas nunca foi possível”, lamenta.
A melhor proposta chegou-lhe às mãos nos anos 90, quando lhe ofereceram mais de mil contos numa temporada. Nem essa lhe dava garantias, quanto mais as inferiores. Perante cifrões pouco aliciantes, preferiu agarrar-se ao trabalho no banco. O xadrez ficou para os tempos livres.