Passados dez dias, os acontecimentos pareciam contradizer-me. Afinal, o PCP e o Bloco predispunham-se a apoiar um Governo de esquerda liderado por António Costa, sacrificando alguns pontos essenciais dos respetivos programas (nomeadamente no que se refere aos compromissos europeus subscritos pelo PS). Como era possível explicar tamanha reviravolta?
Desde logo, por uma rejeição visceral da coligação de direita que, tendo perdido a maioria absoluta, tornara possível, por via da tal maioria aritmética de esquerda, a formação de um Governo alternativo. Nada, aliás, que não tenha acontecido por essa Europa fora, quando o partido mais votado não obteve o apoio parlamentar necessário para governar e foi substituído nessa função pelo segundo partido mais votado (contando com o suporte de formações minoritárias).
Mas havia outros motivos decisivos. Tendo perdido as eleições, Costa precisava de sobreviver politicamente e jogou tudo por tudo nesse objetivo. O instinto de sobrevivência ditou também a tática do PCP, acossado politicamente pela ascensão do Bloco de Esquerda. Já quanto a este, animado pelo seu notável sucesso eleitoral, chamou a si um papel federador das esquerdas que o Livre de Rui Tavares pretendera protagonizar sem sucesso.
Esta tripla combinação de interesses conjunturais substituiu-se a uma união que não existira estrategicamente no plano pré-eleitoral (pelo contrário, as disputas e crispações em torno da conquista do voto útil da esquerda foram frequentes entre o PS, o PCP e o Bloco).
O derrotado Costa tornou-se, assim, o peão de um novo jogo político em que se empenhou energicamente, enquanto a coligação perdia a iniciativa e seguia atrás dos acontecimentos, como se, apesar da sua insuficiente maioria, estivesse fadada pelo destino (e Cavaco Silva) para formar o único Governo possível.
Quando deveriam ter assumido o comando das operações e apresentado, desde a primeira hora, condições irrecusáveis ao PS para viabilizar o programa do Governo e o Orçamento do Estado, os líderes da coligação – mas sobretudo um abúlico Passos – foram-se enredando nas artimanhas táticas de Costa e o seu namoro com os partidos mais à esquerda.
A presunção de que Costa estava refém da PAF, devido aos compromissos europeus e à longa herança das divisões da esquerda, revelou-se um enorme erro. Lutando pela sobrevivência, o líder do PS precisava de conquistar um novo espaço de manobra – a que o PCP e o Bloco se prestaram e a PAF insistiu em menosprezar.
Mantenho o maior ceticismo sobre o futuro de uma união de esquerda construída sem raízes sólidas e duradouras e altamente vulnerável aos golpes de oportunismo tático e desconfiança subterrânea entre os respetivos parceiros. Mas é preciso não esquecer o outro lado da questão.
A diabolização de uma alternativa governamental de esquerda – que fez ressuscitar os fantasmas mais bolorentos do tempo do PREC e parece mobilizar um sem número de comentadores em verdadeiro estado de histeria – mostra até que ponto este país sofre de um grave défice de maturidade democrática.
A superioridade da democracia sobre todos os outros sistemas políticos é a sua capacidade de integrar, no respeito pelas regras cívicas e as leis constitucionais, mesmo aqueles que dela têm uma visão instrumental ou cultivam a nostalgia de uma rutura revolucionária.
O insuspeito João Miguel Tavares notava esta semana no Público que «a quantidade de textos e declarações que andam por aí a queixar-se de que António Costa está a preparar um golpe de Estado toca as raias do absurdo». Até «porque se a direita se mostrar incapaz de formar um governo estável é perfeitamente legítimo a esquerda avançar com uma alternativa».
A direita ganhou as eleições e, com isso, o direito a ser chamada a formar governo. Mas não as ganhou por maioria absoluta, o que a impede de reivindicar o direito absoluto de governar. É isso que todos temos de aprender, a começar por aqueles que, saudosos porventura dos tempos do partido único, pretendem eternizar um regime de integrados e excluídos (a não ser que estes optem pela sua própria exclusão).