Nós temos sete amores: História de uma família poliamorosa

À hora em que Lisboa arruma mais um dia na prateleira, vemos passar pela janela o elétrico 28 que circula nos carris em frente ao café A Brasileira. Os sumos, os pastéis de nata e o gravador já estão em cima da mesa, tudo pronto para a primeira das sete entrevistas a fazer. “Desculpa, dá-me…

Primeiro fala com Isabel, com quem namora há nove meses. Depois com João, com quem namora há cerca de seis anos. Sim, leu bem. O verbo ‘namora’ encontra-se no presente do indicativo quando nos referimos a ambas as relações.

Em boa verdade, João relaciona-se também com Rita e C., que por sua vez, está também com Marco. Parece-lhe confuso?  Talvez um modelo de relação impossível ou até mesmo assustadoramente diferente e vergonhoso? “Constelação familiar” é o que todos preferem para denominar esta sua relação poliamorosa.

A primeira vez que Inês ouviu falar de “poliamor” foi justamente quando conheceu João. Depois de longas horas de conversa pela internet a sua imagem de perfil, um coração formado por dois dragões envolvidos com o símbolo do infinito, despertou-lhe curiosidade e sentiu a necessidade de questionar o que significava. “É a minha vida”, respondeu João. “Achei aquela resposta tão enigmática que acabou por ser tema de conversa durante muito tempo, embora pensasse honestamente que nunca conseguiria relacionar-me com alguém desta forma”.

Tempos em que Inês nem sonhava que conseguiria amar mais do que uma pessoa ao mesmo tempo e, muito menos, integrar uma família de sete pessoas. Quando iniciou a faculdade percebeu que se sentia atraída por mulheres, o que a incentivou a ler literatura lésbica e a investigar sobre sexualidade, poliamor e feminismo, tendo-se mesmo formado mestre em Estudos sobre as Mulheres.

“Depois percebi que, se para mim fazia sentido que uma família pudesse ser formada por um casal monogâmico do mesmo sexo, porque é que haveria de deixar de pensar o amor mais além e rejeitar a ideia do poliamor?”, explica.

Construir as próprias regras

Quando Inês percebe que aquilo que sentia por João ultrapassava os contornos da amizade, este já se relacionava com Sofia há cerca de cinco anos. “Os nossos amigos ficaram muito surpreendidos quando eu e ele começamos a namorar. Eu achava que ele era um arrogante, mas depois conheci-o melhor e percebi que era uma pessoa muito interessante e coerente”, explica Sofia. Sem grandes constrangimentos, encolhe os ombros: “Começar uma relação poliamorosa foi algo muito natural”, conta. Isto porque já sabia que era esta a orientação relacional do João, assumida e bem explicada desde os primórdios da amizade. Mas as coisas nem sempre foram fáceis, uma vez que nem sequer conheciam outras pessoas com relações não-monogâmicas. “Não conhecíamos sequer a palavra poliamor. Todos nós crescemos no meio de relações monogâmicas e, a maior parte das vezes, heterossexuais e aprendemos como nos comportar no seio dessas relações”.

Desafiando a moralidade, os valores e modelos de relação transmitidos pela sociedade, foram os primeiros e os únicos a ‘quebrar a tradição’ das suas famílias de sangue, com o objectivo de elaborar uma relação mais livre, aberta e tolerante às particularidades de cada um enquanto ser singular. “Se algo corria mal nós não nos podíamos aconselhar com ninguém. Criámos os nossos mapas sozinhos. Iniciámos este caminho cometendo muitos erros, com muitas lágrimas, com conversas que duraram horas, com muita vontade de estar um com o outro contra tudo e contra todos e, acima de tudo, muita vontade de descobrir o que era isto do poliamor”.

Se na teoria o modelo de relação não-monogâmica já estava definido, o momento da prática não tardava a chegar. Sofia percebeu, quatro anos depois de namoro, que era possível para ela amar realmente duas pessoas ao mesmo tempo. Foi durante um ano que ambos namoraram com Lília, formando um triângulo amoroso. Confiante, diz-se “habituada” à discriminação e aos olhares. Aliás, a experiência que mais a marcou foi justamente quando viajava de metro com a sua ex-namorada. “Tinha o braço em cima dos ombros dela e estávamos nada mais, nada menos, a falar sobre os diferentes pratos de bacalhau que cada uma gostava mais, até que um grupo de mulheres começou a dizer que aquilo que estávamos a fazer era uma vergonha e que merecíamos ser violadas para sabermos o que era bom”. Por sorte ou azar, saíram na mesma estação, apenas para continuar com as agressões verbais. A única resposta que Sofia se dignou a dar foi encostar Lília a um poste e… o desfecho? “Dei-lhe um beijo daqueles à cinema e elas acabaram por seguir caminho”, conta divertida.

Entre o ciúme e a aceitação

Mesmo quando Lília e João terminaram a relação, Sofia tentou continuar a relacionar-se com ambos. “Foi mesmo muito difícil de gerir porque a minha namorada tinha acabado com o meu namorado. Estavam ambos a sofrer e eu estava literalmente no meio”, explica. A relação entre as duas acabou por terminar passado um mês. Depois disso, João iniciou relações com Inês, C., e Rita.

E nenhuma delas ousa dizer que os ciúmes não existem numa relação aberta. “É claro que há ciúmes”, diz Inês. “Somos seres humanos e o ambiente que nos rodeia ensina-nos os contextos em que nos devemos sentir ameaçados. Por exemplo, se a nossa melhor amiga começar a sair mais com outra amiga que não eu, não é motivo suficiente para ter ciúmes. Mas se eu disser a alguém que o meu namorado vai jantar com uma colega a pergunta ‘e estás com ciúmes?’ é quase automática. Até usamos a expressão ‘fazer ciúme’, ninguém percebe muito bem como é que isso acontece exatamente, mas todos sabemos o que é. Como se uma amizade não pudesse também partir corações”.

Todos admitem que já sentiram ciúmes e que já sentiram medo de serem substituídos. Cada novo elemento pode ser sentido como uma ameaça ao seu conforto e estabilidade relacional e amorosa. Foi o que aconteceu a C., quando assistiu à chegada de Rita, uma das mais recentes estrelas desta constelação. “Ela nunca tinha passado por essa situação de ver alguém novo a chegar. Eu percebi que havia alguma tensão e por isso tentei aproximar-me dela. A C. percebeu que eu no fundo me estava a disponibilizar para ela e que a minha grande vontade era que tudo ficasse bem entre nós todos”, conta Rita. Alguns passeios e tomas de chá juntas bastaram para que se tornassem amigas. Hoje, é com quem Rita se dá melhor dentro da família.

O que é trair no poliamor?

A constelação e as várias estrelas que a constituem. Cada seta representa um relacionamento 

Embora C. partilhe o seu tempo com Marco e João, e João partilhe o seu tempo com Rita, C. e Inês, não se trata de traição. As linhas imaginárias que conectam esta constelação não têm de ser românticas. “Para mim o meu punalua (amor do meu amor) é muito importante. Não consigo comparar o que sinto por ele com nada porque não existe grau de parentesco semelhante. Já éramos amigos antes, mas o facto de ele amar a pessoa que eu amo, fortaleceu a nossa relação”, conta Isabel.

A linha entre a chegada de novos companheiros ou companheiras e traição pode parecer ténue ou transparente, mas este conceito existe nas relações poliamorosas. Tal como numa relação monogâmica a traição ocorre quando alguém omite que mantém um relacionamento com uma outra pessoa. No fundo, todos têm de comunicar ao parceiro que se sentem interessados por outra pessoa, que irão iniciar uma relação e, consequentemente tem de ser consentida e aceite. “Aconteceu uma vez um de nós manter um relacionamento que acontecia ocasionalmente sem o conhecimento dos envolvidos. É um voto de confiança que é quebrado e ultrapassou-se com muito diálogo.”

Comunicar, comunicar, comunicar

“Nós dizemos a brincar, embora seja algo absolutamente fundamental, que o mantra do poliamor é comunicar, comunicar, comunicar”, diz C. abanando a mão, como se estivesse a imitar o padre que dá o sermão na missa. Quando um está desconfortável é imperativo que fale, especialmente com quem sente algum tipo de atrito e expor o que sente. “Nem sempre é fácil”, admite. “Mas a solução passa por aí”.

E mais do que comunicar é necessário conhecerem-se o suficiente para respeitarem o estilo de comunicação, o tempo e os espaços de cada um. “Eu sei que, por exemplo, a Rita se irrita muito quando não percebem o que ela está a tentar dizer, enquanto o João se irrita quando o interrompem muito. Por vezes acontecem discussões e eu, que estou a ver isto de fora, tenho de explicar o que está a acontecer”, explica Inês com uma gargalhada.

Recorda-se quando sentiu ciúmes de uma das estrelas da constelação. Quando ia dormir a casa dela, onde coabita com João e Sofia, sentia frequentemente o seu espaço invadido. “Irritava-me chegar a casa e ver os sapatos dessa pessoa. Parecia que quanto mais me incomodava que os seus pertences estivessem ‘espalhados’ pela casa, mais ela tentava pôr coisas à vista para afirmar a sua presença”.

Atualmente nada disso acontece. Foi por reconhecerem a individualidade e o direito de privacidade de cada um que escolheram morar os três juntos e em quartos separados. “Não fazia sentido nenhum alguém ser obrigado a partilhar a cama com alguém por quem não sente esse nível de intimidade”. Todas e todos os envolvidos visitam as suas companheiras e companheiros na sua casa, onde passam muito tempo em família.

Discriminação e perguntas incómodas

Aliás, para estes poliamorosos chega a ser uma ofensa que as pessoas perguntem se dormem todos juntos e especialmente quando afirmam que vivem o poliamor como uma desculpa para fazer mais sexo. “As coisas não estão intrinsecamente ligadas e é extremamente redutor pensarem isso de nós, que temos uma relação que tem tanto de complexa como de completa”, diz Isabel, namorada de Inês, a mais recente estrela da constelação.

“Sempre que o poliamor vem à conversa sinto que tenho de defender a minha imagem e que tenho de provar que não sou uma psicopata ou promíscua. De repente começo a ser vista como ‘a poli’, enquanto eu sou muito mais que isso. Eu também toco gaita de foles, gosto de escalar… E as pessoas não percebem que é igualmente mau eu perguntar se têm namorado e se dormem com ele”, continua.

Rita, que se identifica como assexual, nem sabe se deve considerar isso maldoso, rude ou ridículo. “Eu se calhar prefiro ir ao cinema do que ter relações sexuais. Provavelmente para mim basta fazê-lo uma ou duas vezes por mês, ou nem isso, e fico satisfeita. Não é para isso que estou nesta relação”, conta referindo que a maior vantagem é estar rodeada de uma “rede de apoio de pessoas que não julgam”.

Todos de forma geral sentem na pele o desconforto dos olhares, das insinuações, e de várias formas de discriminação por serem poliamorosos. “A discriminação começa quando vou a um hotel e o quarto é duplo ou quando ganho um bilhete de cinema para dois. Qual dos meus dois companheiros levo? Somos poliamorosos num mundo onde vem tudo aos pares. Será que seria diferente se não fossemos ensinados a ter de escolher?”, questiona Inês.

Mas, quando assumem a sua orientação relacional as mulheres tendem a sofrer mais a dicotomia refletora da sociedade patriarcal: “Muitas vezes sou vista como ‘fácil’, tarada sexual ou então alguém que está a ser manipulada por alguém. As pessoas nunca perdem tempo para pensar que eu faço isto porque eu quero e escolho”, conta C.

A primeira dificuldade surge quando assumem à família o modelo de relação que decidiram viver. Sofia nunca teve coragem de dizer à mãe que se identificava como poliamorosa. Já a irmã disse-lhe que não era o que tinha sonhado para ela. “Tive de lhe explicar que a minha vida nunca iria ser o que ela sonha para mim. Mas sim, o que eu quero e escolho fazer, até porque nunca pedi a opinião de ninguém”.

simoneta.vicente@sol.pt