Já passaram 15 dias desde a data legal para que a loja fosse desocupada. O processo de despejo, iniciado pelo grupo Visabeira – que pretende ali construir um hotel – foi aprovado pela Câmara Municipal de Lisboa em janeiro deste ano. A Sant’Anna não cede. “Quem recebe uma herança de 275 anos de fábrica e quase 100 anos de loja tem de a deixar ainda melhor para a geração futura, não perdê-la”, diz Francisco Tomás, diretor de vendas e marketing da fábrica. E garante que as portas continuarão abertas até ordem definitiva. “Neste momento, a via judicial é a única a seguir”.
À boleia do processo, a Tabu foi conhecer os recantos da fábrica de azulejos mais antiga do país e, pelo caminho, aproveitou para conhecer a maior coleção do azulejo industrial português, guardada por um senhor que podia ser seu avô: o senhor Cortiço. E apaixonou-se pelos quadradinhos de cerâmica que fazem parte da cultura visual do país há mais de 500 anos, levando-o a si, ao leitor, por uma pequena viagem na história da azulejaria. Portuguesa, com certeza.
Do Palácio Nacional de Sintra ao Museu do Azulejo
O azulejo tem uma génese árabe, mas foi trazido para Portugal por um católico no final de 1400. O católico, que dava pelo nome de Manuel, nascera em Alcochete e receberia o cognome de Venturoso. Deslumbrado pela decoração exuberante que tinha visitado no interior dos edifícios de Sevilha, Toledo e Saragoça, encomendaria azulejos hispano-árabes para o Palácio Nacional de Sintra, que lhe serviu de residência. Nos séculos seguintes, o azulejo tornar-se-ia comum nos palácios e, mais tarde, foi apropriado pela burguesia. Começou a ser produzido numa escala continuamente maior, até ser industrializado. O seu uso tornou-se comum, a estética e as técnicas foram mudando ao longo dos anos. Marca inegável da cultura, tem direito, inclusive, à criação de um museu.
Na década de 60 do século XX, a coleção de azulejos existentes no Museu Nacional de Arte Antiga é transferida para o Convento da Madre de Deus, criando a base de um futuro museu. O projeto é concretizado – nasce o Museu do Azulejo, num edifício muito especial: no convento onde jaz a rainha Dona Leonor, irmã do católico de nome Manuel, o rei Venturoso que, há 500 anos, escolhera azulejos para embelezar as paredes do seu palácio.
Uma fábrica para clientes especiais
Em 1741, a argila na zona lisboeta da Estrela motivou a criação de uma fábrica de olaria naquele lugarejo. Quis a história que, 14 anos depois, Lisboa tremesse com o grande terramoto. Urgia reconstruir, e “o azulejo era um material mais barato do que a pedra”. A Fábrica de Sant’Anna redireciona a sua produção para a cerâmica e o azulejo, que rapidamente começa a cobrir as fachadas dos prédios. E muda duas vezes de localização – primeiro para a Junqueira, depois para a Calçada da Boa-Hora, onde se mantém em funcionamento.
Francisco Tomás, responsável pelas vendas e marketing da Fábrica de Sant’Anna, faz questão de mostrar toda a fábrica, que pode, aliás, ser visitada pelo público. “Como pode ver, todo o processo é feito à mão”. Começa tudo com argila, na olaria, seguindo-se a vidração e finalmente a pintura. Os trinta funcionários da empresa produzem azulejos padrão, painéis e faiança. “Os azulejos padrão são os mais conhecidos, e são os que mais vendemos”.
No processo de fazer azulejo, há um quê de telúrico e alquímico. Por exemplo, muita da argila retirada para a construção do Centro Comercial Colombo acabou aqui. A alquimia da segunda cozedura, a que fixa a cor, nunca proporciona resultados absolutamente iguais. “Podemos cozer um azulejo hoje, saindo uma cor. Se o fizéssemos amanhã, sairia diferente”. Por isso, Francisco tem a certeza de que “os compradores dos azulejos da Sant’Anna são pessoas especiais, informadas – percebem que não há dois azulejos iguais, e que alguns podem ter imperfeições”. Mas é isto que torna o produto único, é o carimbo de um processo totalmente manual que pode demorar meses. Até o estado meteorológico influencia o produto final.
No entanto, os compradores ‘especiais e informados’ são, maioritariamente, estrangeiros. Cerca de 85% da produção da fábrica de Sant’Anna é para exportação. Os restantes 25% vendem-se diretamente nas lojas da rua do Alecrim e da calçada da Boa Hora, mas os principais clientes acabam por ser os turistas. Mas aqui há que fazer uma ressalva: é que das exportações, mais de 60% provêm de contactos gerados na loja da rua do Alecrim, em vias de encerrar. “E essa loja é, definitivamente, a nossa montra principal”. Francisco diz estar a fazer tudo “para garantir a continuidade do espaço”. E diz não perceber “não só como a CML autorizou o processo de construção do hotel” como “se recusa a considerar a loja imóvel de interesse municipal”.
São também estrangeiros os que procuram a fábrica por motivos académicos. “Já tivemos aqui muitas pessoas a fazer estágio, curiosamente nenhuns portugueses – vêm muitos alunos de Sevilha, que era um centro de produção formidável, mas onde fechou tudo”. De Sevilha, curiosamente de onde tinham vindo os primeiros azulejos hispano-mouriscos, aqueles que o católico de nome Manuel encomendou.
Ao contrário dessas falências, Sant’Anna é um caso de empreendedorismo de sucesso. “Só sentimos a crise com o decréscimo de encomendas do mercado norte-americano. Mesmo assim, temos crescido cerca de 20% por ano. A fábrica tem um nome a nível internacional fantástico, um nome totalmente associado ao azulejo português”.
Em quase 275 anos de história, os azulejos de Sant’Anna espalharam-se pelo mundo. E durante esse período, há, obviamente lugar para histórias caricatas, contadas em jeito de segredo. Por exemplo, a história do decorador que, nos anos 1960, encomendou painéis de azulejo para um palácio para os lados do Estoril, por ocasião da ‘festa do século’, que deveriam parecer antigos. Quando a encomenda chegou, mandou um funcionário de tamancos andar sobre eles para se partirem e parecerem, verdadeiramente, do século XVIII.
Dez anos antes deste episódio, longe de pensar em azulejos, pisados ou inteiros, o senhor Cortiço mudava-se para Lisboa.
Lembra-se daquele azulejo da sala da avó? Eles têm
Os padrões são para todos os gostos. E os azulejos vendidos são usados para os mais diversos fins – por exemplo, como bases para copos Foto: Mariana Madrinha/SOL
“No meio daquele armazém gigante, ele sabia, quase de cabeça, o que tinha e o que não tinha. Era fascinante”. Ricardo Cortiço, o neto que o filmou no documentário Avô Cortiço e um dos herdeiros da coleção de azulejos do avô, assume ainda não ter a mesma capacidade.
O senhor Cortiço começou, por casualidade, a comprar e vender restos de azulejos industriais de coleções extintas. “Entretanto, percebeu que se podia tornar um negócio e até bastante rentável”. As pessoas começaram a procurá-lo e a descobrir o último reduto para encontrar “aquele azulejo partido de que precisavam”.
O negócio foi crescendo. O senhor Cortiço construiu um armazém, na zona de Benfica, que foi enchendo ao longo da vida. Comprou outro em Alenquer. Em 2009, o de Benfica foi demolido pela Câmara Municipal de Lisboa, e centenas de paletes de azulejo foram levadas.
No entanto, Pedro, João, Ricardo e Tiago Cortiço – os netos – não estão preocupados com essas paletes perdidas. Nem com o fato de venderem azulejos descontinuados. “Já olhámos para o stock de forma muito informal, mas temos a certeza que possuímos milhões de unidades. Até acabar, nem sequer pensamos nisso”.
O senhor Cortiço já não viu a loja, Cortiço e Netos, abrir no 66 da calçada de Santo André, em 2014. “Faleceu em 2012, mas ainda viu o documentário”.
Os netos receberam o negócio como um legado. “É muito comum entrarem aqui pessoas e exclamarem: aquilo está na parede da minha avó! Parece uma história caricata, mas 90% dos portugueses diz isso. Esse lado quase antropológico deste negócio também é muito interessante, mas traz alguma responsabilidade. Se nós não ficássemos com isto, iria tudo para o lixo”.
É um negócio familiar. Além da loja, os azulejos do avô Cortiço também inspiraram Rita João e o neto Pedro Ferreira, do estúdio de design Pedrita. Em 2007, criaram o projeto onde o azulejo partido é utilizado para compor imagens pixelizadas. Mais tarde, fizeram projetos para o jardim Botânico e para o Rock in Rio.
Do Museu do Azulejo veio também o reconhecimento do valor da coleção. “O antigo diretor reconheceu este espólio como a maior coleção de azulejos industriais portugueses”.
A ambição da Cortiço e Netos é “ter uma espécie de casa ou museu que preserve a coleção que o nosso avô criou, sobretudo para difundi-la”. “Apesar destes azulejos serem industriais e muito novos – os mais velhos que temos têm 40 anos – também fazem parte da nossa história”, testemunha Ricardo Cortiço.
Uma história ainda a ser escrita
Os portugueses gostam de azulejo. E os que não gostam, estão habituados a ele. Está na estética do campo e da cidade – em estações de metro e igrejas, em palácios e apartamentos. É, cada vez mais, apreciado por turistas. “Está, definitivamente, na moda” – é a opinião partilhada por Francisco Tomás e Ricardo Cortiço.
Para a loja da rua do Alecrim da Fábrica Sant’Anna, estar na moda pode não ser suficiente. “Já passámos por incêndios, revoluções, crises. Havemos de passar por mais esta”, assegura Francisco. Resta saber se no mesmo sítio.