“Não quero fazer as figuras tristes que alguns têm feito nos finais das suas carreiras. Estando limitado, prefiro não fazer do que pôr-me a fazer caricaturas de mim próprio até à exaustão. Quero continuar a encenar. Mas não posso ser ator. Os medicamentos que tomo tiram-me um bocado a memória”. Sugeriram-lhe o uso de um auricular, por onde lhe poderiam soprar o texto. Recusou-o. “Muitos colegas fazem-no. Mas na minha maneira de estar no palco seria uma aldrabice. A personagem não está a ouvir ninguém dizer-lhe texto”.
Se o dia 17 de outubro ficará como o último em que Luis Miguel Cintra pisou o palco do Teatro do Bairro Alto não ficará para a história como o último em que deu vida a uma personagem: continua a integrar o elenco de Hamlet que está agora em cena no palco do Teatro Joaquim Benite, em Almada, até dia 15, protagonizada por Guilherme Gomes, o ator de 22 anos a quem o diretor da Cornucópia teceu grandes elogios quando revelou a intenção de abandonar os palcos. Elogios que Cintra diz ter feito a Guilherme como poderia ter feito a outros. “Foi o Guilherme porque era ele quem estava ali e era o melhor exemplo do que eu queria dizer. Angustia-me pensar que vou deixar a profissão sem mim. Tenho tido dentro do teatro português a função de grilo do Pinóquio – digo eu por vaidade, mas é verdade também para outras pessoas da minha geração que ainda estão a trabalhar”.
Os elogios assumiram, porém, um papel de relevo, maior pelo facto de a Cornucópia ter como princípio ninguém assumir lugares de destaque. Cintra quis fugir à regra antes de dizer adeus. “Consola-me saber que há outros que podem fazer o que eu fazia. Fico contente por saber que outros representarão bem, que não acabou. Mas em vez de pensarem nos que vinham a seguir pensaram no que ia embora. Ainda estava eu a dizer isto e já estava tudo a fungar e a chorar porque eu ia acabar a carreira”.
Ironia do destino, se é com a peça de Shakespeare que acaba a carreira de ator, certo é que ela o acompanha desde o início. Estava Cintra na universidade quando Sophia de Mello Breyner lhe disse estar a traduzir o Hamlet. Mas demorou anos. Em todos os livros que lhe dava, Sophia escrevia: “À espera do Hamlet”. Quando lhe enviou um com a dedicatória “Finalmente, o Hamlet!”, Cintra achou estar já velho para o papel. Queria um príncipe da Dinamarca jovem, não um homem de 40 anos: “Um rapaz de 20 é que ainda pode perguntar: ‘mas como resolvo a minha vida?’ Está na altura de passar a adulto e assumir a responsabilidade. É comovente: na peça os jovens que tentam alterar o seu destino são esmagados por uma máquina que os tritura”.
O projeto foi adiado até que Cintra percebeu que tinha o elenco jovem que tanto queria e o ator certo, com a idade certa, para o Hamlet. Tudo se conjugava para levar o conflito de gerações à cena. “Hamlet não reconhece o sistema de poder em que se insere como válido mas não tem uma alternativa: quem o educou não lhe deu instrumentos para a inventar. É paralelo ao que se passa hoje. Muita gente recusou o ideal de felicidade da sociedade de consumo mas ninguém sabe como o modificar”.
O encenador diz-se obcecado por esta questão. “As pessoas são manipuladas por essa espécie de superpoder económico que transcende o funcionamento dos parlamentos. Há qualquer coisa que é necessário mudar. O meu desencanto com a vida atual e a transformação para uma tirania do dinheiro é tal que sinto desalento”, declara. Porém não quer ter o peso no currículo de ter transmitido um sentimento negativo às gerações vindouras, mas antes de “deixar terreno para que possam crescer e inventar”. Então, em que outro sistema político nos podemos inserir? “Os mais novos têm que inventar uma nova maneira. Só seremos felizes quando as coisas mudarem”.
Experiência para ganhar exigência
Guilherme Gomes tornou-se aqui o rosto desses amanhãs. E não se sente vergado ao peso da responsabilidade. É com segurança que, dia após dia, tem subido ao palco. “Fico contente por uma pessoa de quem gosto muito me confiar esta responsabilidade. De início não tomei consciência dela. E depois não deixei que tivesse muito peso. Normalmente a responsabilidade vem com uma conotação negativa. E não é o caso. É uma coisa boa, construtiva”. Hamlet costuma ser o corolário de uma carreira. Foi um grande presente que Cintra lhe deu. Terá sido cedo demais? O que se seguirá? “Perguntam-me como é fazer o Hamlet com esta idade. Não tinha o desejo de fazer a personagem. Não tenho consciência do papel como estar na crista da onda. Não penso dessa maneira. O que se coloca em relação ao Hamlet, pela forma como o texto está encenado, são coisas que me fazem sentido”. Com a certeza de que daqui para a frente não será o mesmo. “Tudo o que faça a seguir vai ser enriquecido pelo que fiz aqui. Ao olhar para uma outra personagem, uma outra peça, vou exigir um bocadinho mais”.
