Aliás, nestes 40 anos houve quase sempre uma maioria de deputados de esquerda na AR. Maioria aritmética, mas nunca política. Mário Soares recusou-a repetidamente em 1976 (governando o PS em minoria), em 1978 (ao formar uma maioria com o CDS) e em 1983 (quando optou pelo apoio do PSD). Também António Guterres ignorou essa maioria aritmética em 1995 (quando lhe faltavam 4 deputados para a maioria) e em 1999 (quando lhe bastava um só deputado). E até José Sócrates, em 2009, recusou uma maioria disponível com os 31 parlamentares do BE e do PCP, preferindo governar em minoria.
Segunda mistificação. Há uma maioria clara de mais de 60% dos eleitores (todos menos os que votaram na coligação) contra a austeridade. Ora, como é óbvio, ninguém vota a favor da austeridade, todos terão votado contra ela. Desde os eleitores dos partidos de esquerda aos do PSD e do CDS, crentes de que era possível o Governo aliviá-la agora, depois de ter posto as contas do país em ordem nos últimos quatro anos. E, pela mesma lógica, se poderia dizer que mais de 80% dos eleitores (todos menos os do BE e do PCP) votou a favor da União Europeia e da moeda única – e que o PS defraudou essa ampla maioria.
Terceira mistificação. Isto é a democracia a funcionar, diz a esquerda. E é, também, uma chico-espertice pós-eleitoral – governam os derrotados – feita ao abrigo das generosas regras da democracia, mas que a desvirtua – ética e politicamente. António Costa sempre escondeu, antes do dia 4 de outubro, que tinha no bolso esta solução à Syriza. Se o tivesse revelado antes, o PS não chegaria aos 32,3% de votantes que teve. Por certo, não atingiria sequer os 25%. Como adiante se verá.