Leia este texto todo. Agora feche a revista e repita cada uma das palavras aqui escritas. Tem de ser seguido, sem pausas. Se o conseguir, habilita-se a entrar no nível básico dos campeões de memória, e pode até arriscar a ida a uma fase de qualificação de um mundial. É verdade, até existe um mundial para este ofício de decorar palavras, imagens e números em grande quantidade e no mínimo lapso de tempo. O último realizou-se em Hainan, na China, e consagrou, pela segunda vez consecutiva, o sueco Jonas von Essen.
Pois bem, antes de passarmos às apresentações, convém dizer que o memorizador que aqui retratamos, nascido em 1965 em Albacete, é conhecido no seu país pela sua versatilidade. A prová-lo estão os inúmeros cursos que ministra nas mais diversas áreas, do aperfeiçoamento de métodos para estudar à hipnose, passando pela aprendizagem de idiomas.
E é com um livro sobre maneiras pouco ortodoxas para aprender a língua teutónica que Ramón Campayo se apresenta aos portugueses, Aprenda Alemão em 7 Dias. Tão simples quanto isso. O método é, aliás, desconcertante e um pouco inusitado até. O autor, cujo cartão de visita da editora diz que é o campeão mundial de memória rápida e não propriamente um sorumbático académico germanófilo, dispõe a aprendizagem por palavras em quatro u colunas. Na primeira, encontramos o termo em alemão, na segunda a pronúncia figurada daquele vocábulo; na terceira, a palavra portuguesa correspondente e na quarta uma associação inverosímil.
Nesta última coluna da tabela está o segredo da memorização: ao lermos uma palavra que se associa ao som da correspondente em alemão – juntamente com a palavra traduzida, na mesma frase – acabamos por fixar. Nada como um exemplo, para deixar as coisas mais claras: à palavra ‘Essen’ segue-se a forma de a pronunciar, a tradução (‘comer’) e uma frase para ajudar à memória: «Quanto mais se come, mais forma de esse o corpo cria». As palavras ‘come’ (a tradução) e ‘esse’ estão destacadas e o método aplica-se a várias outras, daquelas que dão jeito para o dia-a-dia.
Na verdade, esta é uma demonstração humilde deste baluarte das mnemónicas. Campayo afirma, por exemplo, ter sido capaz de memorizar 23.200 palavras em 72 horas depois de as ter ouvido apenas uma vez, lembrando-se da posição exata de cada uma delas e o número de ordem nas frases. À pergunta ‘qual é a palavra número 18.327’ ele terá respondido com precisão. Depois identificou 500 palavras escolhidas ao acaso, errando apenas em dois casos. Nota-se, no seu site – de onde é extraída esta informação – que a prestação foi reconhecida por um notário…
Esta é uma das marcas mais impressionantes do espanhol, que junta a muitas outras (ver caixas na página anterior). Foi o caso quando, vendado, conseguiu memorizar seis baralhos de cartas – ou seja, 240 ao todo – dispostas sobre uma mesa e cujas figuras e naipes lhes eram ditos de forma aleatória. E quando referimos ‘ditos’ isso significa, claro está, apenas uma vez.
Outros memorizadores conhecidos, como o tricampeão mundial Ben Pridmore, conseguem memorizar 36 baralhos de cartas em meia hora. Este britânico também já se atirou ao desafio de fixar números binários em pouco tempo.
Treinar a mente
Mas qual é o segredo para desempenhos destes? Não é simples, e Campayo tem muitas reservas em partilhá-lo, à conversa por email com a Tabu: «O segredo é desenvolver uma boa técnica e treinar. A mente é como o corpo». O espanhol recorda-se de já ser um adulto quando começou a explorar estas capacidades. A partir dos 20 anos deu-se conta de que a memória não o atraiçoava e descobriu e desenvolveu técnicas para a preservar e fortalecer. O véu do segredo começa a ser discretamente descoberto: «Os treinos podem ser feitos através de softwares de leitura rápida, velocidade de processamento mental, memória eidética, etc.».
Os cientistas dizem que o cérebro de uma pessoa com facilidade de aplicar a memória em assuntos tão estranhos é exatamente igual ao do comum dos mortais. Pelo menos, segundo um estudo citado pelo jornalista científico Joshua Foer, que seguiu alguns campeões de memória norte-americanos e britânicos e surpreendeu-se com a dedicação e o interesse com que decoram listas telefónicas inteiras… O que eles utilizam são partes diferentes do cérebro, ligadas à memória espacial e à navegação. A conversa está registada numa TED Talk e pode ser vista no YouTube.
Mas é preciso não esquecer o memorizador principal desta história. Antes desta consciência, Ramón Campayo confessava ao diário espanhol ABC que desde os sete anos de idade sentia que a sua vida «iria ser um número». Dizia ao jornal, então, que se recordava bem «daqueles problemas matemáticos tão típicos e antes de acabar o enunciado já tinha a solução», confessa. «Comecei a desenvolver as minhas primeiras técnicas de estudo, fazia exercícios para ler depressa, de modo que aos 15 anos o meu nível era muito alto». Antes do Natal já tinha fixado todo o programa escolar, acrescenta.
O passo para as competições viria anos mais tarde. Entretanto, teve ainda algumas profissões aparentemente desligadas destas proezas. Foi polícia em Barcelona, por exemplo.
Mas percebeu que os seus dons poderiam levá-lo a outros voos. Começou a participar em concursos e lançou-se nas conferências e na TV. Fixou o seu QI nos 194 (a partir dos 140 estamos perante génios; o matemático sobredotado australiano Terence Tao anda pelos 250), começou a partilhar a experiência e as técnicas que o levam a decorar quase tudo o que lhe aparece pela frente.
A certa altura, caiu, evidentemente, nas redes da net, onde ministra cursos online, com inscrições disponíveis através do seu site. A versatilidade fica, mais uma vez, evidente e pode levar-nos a torcer o nariz com ceticismo: três cursos são de técnicas de estudo, cujos preços variam entre os 90 e os 590 euros, consoante a duração. Mas, além dos conselhos práticos sobre como estudar, há uma outra formação que ensina o estudo das leis, ou seja, da capacidade de as saber de cor. Está em promoção, por 24 euros…
Mas, com a técnica certa, diz ainda Ramón Campayo, parece não ser forçoso ser-se um génio para aprender técnicas para decorar o mundo. Aparentemente, basta ter a memória intacta e mostrar-lhe as estradas certas. Se «a memória é o perfume da alma», como escreveu George Sand – talvez injustamente lembrada hoje apenas como amante de Chopin – as fragrâncias de Campayo parecem ser intensas e variadas…