Molenbeek, o ninho da serpente

Uma boulangerie do século XVIII anuncia em garrafais, nos vidros, a promessa de ‘gourmanderies belges’ (guloseimas belgas). Uns metros à frente – pode não chegar a um quilómetro – encontramos um Chicha Bar, cafezito onde podemos desfrutar de um cachimbo de água marroquino. 

Há anos que a vizinhança se faz destes pormenores simpáticos e exóticos na capital belga, mas, na periferia, logo a seguir ao centro, o bairro de Saint-Jans-Molenbeek (São João de Molenbeek) foi-se tornando quase independente, como um daqueles planetas distantes que parecem ter colidido no centro de uma cidade. 

Molenbeek (palavra neerlandesa que cruza ‘moinho’ e ‘riacho’) tem hoje um nome tão pitoresco quanto perigoso. E por mais que Bruxelas mantenha o seu discreto charme burguês, e deslize com aparente tranquilidade de bicicleta à chuva, há uma cara que aparece, omnipresente, nos jornais dispostos nos quiosques, o proclamado inimigo público número um: Salah Abdeslam, belga de 26 anos suspeito de ter conduzido o carro onde seguia o pelotão que dirigiu o ataque contra o Bataclan e o grupo que atuou no X e no XI bairros parisienses, nos atentados simultâneos à capital francesa no dia 13.

Logo a seguir a mais uma das operações (falhadas) da polícia de Bruxelas para o deter, nas ruas Ransfort e Delaunoy, no coracão de Molenbeek, o bairro parece calmo. Miúdos rumam a destinos incertos, com ar de miúdos como outros quaisquer, com blusões Quechua adaptados a esta moinha de frio belga, as calças a cair abaixo da cintura, os All Star pretos. Um deles diz conhecer um dos irmãos de Salah, o que foi detido e depois solto, logo no domingo seguinte aos atentados. Fala dos erros dos ‘flics’ (os ‘chuis’), já que encarceraram, acrescenta, um homem «pacato, que trabalha na câmara». Quanto a Salah, não se manifesta, mas acredita que há mais gente da sua idade que de vez em quando «desaparece e volta diferente». Vão para a Síria? A resposta é pronta: será o repórter um ‘flic ou quoi’? Não sabem, e a conversa fica por aqui. 

Entre as lojas de artigos marroquinos e as mesquitas – nem todas identificadas como tal, os habitantes não sabem precisar quantas são – está um homem que aparenta ser um clichê do líder religioso muçulmano. De túnica e longa barba branca, não diz o nome – ninguém que acedeu a falar à Tabu o faz, o medo é o novo rei da Bélgica, seja entre muçulmanos ou cristãos – mas revela, orgulhoso, que nasceu na Argélia no ano da independência (1962). Antes de tudo, diz-se um belga, já que veio para cá em pequeno. Não se considera um líder religioso, mas «um homem de oração». 

Sendo alguém visivelmente respeitado no bairro – pelo menos, todos o saúdam com uma palavra amiga, nem que seja um Salaam Aleikum (algo como ‘que a paz esteja sobre vós’) passageiro – é inevitável a pergunta: quando lhe parece que um jovem da sua comunidade comeca a ter um discurso demasiado ortodoxo, o que faz? «Mas, monsieur, eles não anunciam que são jihadistas. Eles fazem-se explodir e só depois é que sabemos». E afirma que «consta» que alguns jovens são aliciados a fugir ao desemprego e à exclusão social por «gente que vem recrutar por três mil euros mais uma mulher à espera deles lá». Mas onde é ‘lá’? A Síria? O homem encolhe os ombros e estende as sobrancelhas. E a resposta é esta. 

Garante, de qualquer modo, que segue alguns dos jovens e prega «a verdadeira palavra do Islão, aquela que diz que só Deus nos dá a vida e só Ele a pode tirar». E não quer «passar de um homem que só vai à mesquita orar, encontrar as pessoas e regozijar com a sua presença, em comunhão». Para ele, o Ocidente, mas também os muçulmanos que são alvos de atentados no Iraque, em Marrocos, no Líbano e até em Paris – recorda que também há seguidores do Islão entre as vítimas dos atentados do dia 13 – estão a ser vítimas da decisão de George W. Bush e Tony Blair de invadirem o Iraque em 2003. Blair pediu desculpas públicas pelo engodo das ‘armas de destruicão em massa’ que Saddam Hussein afinal não tinha. «Mas isso não chega. Ele ajudou a criar um monstro. Voilà».

Alheios à geopolítica, dois marroquinos proprietários de um talho halal dizem que o bairro está igual e que ouvem as notícias «pela rádio». Lamentam, e «c’est tout, monsieur». Têm à porta um anúncio de uma escola árabe e dizem que não se trata de nada que tenha a ver com recrutamentos ou coisa que o valha. «É só para os jovens não perderem o contacto com a língua materna dos pais».

Mais atrás na rua, uma jovem, de véu, trabalha numa sapataria feminina. Teme pelo futuro e pelos «desvarios dos jovens» que fazem deste «um mundo louco». Já começou a sentir os olhares desconfiados nos meios de transporte ou no centro de saúde. Seguimos um táxi. Ao volante está um tunisino de 60 anos, que brande o jornal, furioso, com a inevitável fotografia de Salah na primeira página: «Tenho um colega marroquino que usa barbas compridas. Recebeu um passageiro americano e assim que se virou para ele para dizer ‘bom dia’, o passageiro fugiu. Perguntei-lhe por que há de usar a barba assim para ser um bom muçulmano. Mas nada disto acontecia se não fosse este connard (algo como ‘estupor’ numa tradução suave)» e brande outra vez o Salah impresso no jornal.

Para sair do bairro, bastam umas cinco estações de metro até ao centro de Bruxelas. Voltamos ao planeta inicial, à famosa Grand Place, que está iluminada com a tricolor francesa, tal como a Torre de Belém ou um sem-número de monumentos um pouco por todo o mundo. Os turistas passeiam, alheios, mas, junto à Estacão Central ou a edifícios como as embaixadas da Franca e dos EUA vemos militares – no rescaldo dos ataques a Paris, o nível de alerta subiu de dois para três e mais 300 homens patrulham a cidade. Junto à Comissão Europeia, lá estão em permanência mais dois soldados. Os veículos, sejam quais forem, não transpõem o parque de estacionamento do edifício sem antes serem esquadrinhados por um detetor de bombas. 

Há momentos em que é difícil conceber que estamos na terra de Tintim ou de inúmeros personagens de BD. O que fazem aqui metralhadoras? Mas os belgas transitam, calmos e de charme discreto. E também fazem minutos de silêncio em homenagem aos seus vizinhos. Nos jornais, há quem quase peça desculpa aos franceses por Molenbeek, traçando um quadro cinzento (exclusão, 28% de desemprego, quase 40% entre os jovens) e enumerando o legado sinistro que o bairro tem dado ao mundo: afinal foi lá que se orquestraram, por exemplo, os atentados de Madrid de 2004, o ataque ao Museu Judaico da Bélgica no ano passado e esta sexta-feira fatídica em Paris… 

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