Refiro-me à denúncia do Benfica junto do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (CD) contra o argelino Islam Slimani, do Sporting, por este ter, alegadamente, dado uma cotovelada no grego Samaris, na partida entre as duas equipas a contar para a quarta eliminatória da Taça de Portugal.
De acordo com uma fonte do clube encarnado, a queixa da referida agressão já seguiu para o CD, enquadrando-se os factos na aplicação do disposto no art. 139º nº1 do Regulamento Disciplinar da Federação, cuja moldura penal prevê a aplicação de uma sanção desportiva ao jogador argelino que vai de dois a dez jogos.
Em consequência da referida denúncia, o Sporting reagiu com uma exposição similar à do Benfica, apresentando diversos lances de pretensa conduta violenta por parte dos jogadores encarnados nos últimos jogos disputados entre estas duas equipas.
O clube leonino denunciou Samaris (por um lance com Bryan Ruiz no dérbi da Luz e por outro com Gelson Martins no dérbi de Alvalade), Eliseu (várias alegadas tentativas de agressão no jogo da Taça), Jardel (suposta agressão violenta a Slimani), Talisca (alegada tentativa de agressão a Adrien) e, por último, Sílvio (alegada entrada violenta sobre Adrien).
Refira-se com relevância para o assunto que o Sporting apresentou imagens televisivas para justificar a sua denúncia, existindo também, como é de conhecimento público, imagens televisivas do facto que consubstancia a denúncia do Benfica no jogo da Taça de Portugal.
Entretanto, o CD da Federação Portuguesa de Futebol, na sua secção não-profissional, decidiu abrir processos de averiguação às participações do Benfica e do Sporting relativas às agressões e comportamento violento entre vários jogadores no último dérbi da Taça de Portugal.
Quanto às situações de eventual relevância disciplinar apresentadas pelo Sporting, relativas ao dérbi na Luz, da 8ª jornada do Campeonato, estas serão enviadas para a Comissão de Instrução e Inquéritos da Liga (doravante CII), pois é a este órgão que nos termos regulamentares compete a iniciativa disciplinar das competições profissionais de futebol.
Segundo escreve o diário Correio da Manhã na sua edição de sábado, os membros do CD estiveram renitentes em apreciar as queixas anteriormente referidas, já que não é usual avançar com processos sustentados em fotografias ou vídeos. Segundo a notícia, o CD também não tem por hábito promover os denominados processos de flagrante delito, como é o caso do que sucedeu entre Slimani e Samaris, ao contrário do que acontece com a Comissão de Instrução e Inquéritos da Liga, entidade responsável pelo desencadeamento do processo disciplinar nas competições profissionais de futebol, das quais se exclui, obviamente, a Taça de Portugal, que é organizada pela Federação Portuguesa de Futebol.
Ainda de acordo com informações veiculadas pelo referido jornal, a decisão de avançar com os processos de inquérito ou de averiguação acabou por ser aceite pela maioria dos elementos do CD, apesar de uma acalorada discussão. Sendo assim, Benfica e Sporting vão agora poder apresentar testemunhas e provas, designadamente, audiovisuais ou outras para sustentar as respetivas queixas.
Julgo que a grande maioria dos leitores não compreendeu a gravidade da referida deliberação, nem os trâmites subsequentes de cada um dos aludidos procedimentos disciplinares, pelo que, sumariamente, se impõe alguns esclarecimentos.
Em primeiro lugar, os elementos audiovisuais, designadamente as imagens televisivas, podem ser utilizados quer para a instauração e fundamentação de um procedimento disciplinar, quer como meio de prova para, em sentido oposto, proceder-se ao afastamento eventual responsabilidade disciplinar. Recorde-se que, no procedimento disciplinar desportivo, são admitidos todos os meios de prova em Direito permitidos.
No entanto, quanto ao procedimento disciplinar que corre termos no CD, dispõe o art. 219º nº2 do Regulamento Disciplinar da FPF que: “Os meios audiovisuais, designadamente imagens televisivas, apenas têm força probatória plena, quando: a) Tenham sido captados por operador televisivo, ou equivalente, que não seja pertencente a clube. b) Tenham sido captados por operador televisivo, ou equivalente, que, pertencendo a um clube, nem este nem nenhum dos agentes desportivos a si vinculados sejam sujeitos procedimentais”.
Acrescentando o nº3 da mesma disposição que: “Nos casos não previstos no número anterior, os meios audiovisuais são livremente apreciados.” E portanto, admissíveis para fundamentar uma acusação.
Em segundo lugar, no âmbito do procedimento disciplinar que correrá termos na CII, (originado somente pela participação da Sporting, quanto às situações denunciadas pelo dérbi na Luz), dispõe o art. 263º do Regulamento Disciplinar da Liga de Clubes que: “Tem lugar a aplicação do processo sumaríssimo quando, com recurso à reprodução de imagem televisiva e às declarações escritas da equipa de arbitragem, se verifique que a equipa de arbitragem não sancionou conduta que constitua risco grave para a integridade física dos agentes ou grave atentado à ética desportiva exigida aos intervenientes no jogo, desde que se demonstre que a equipa de arbitragem não tenha observado e avaliado essa conduta e desde que a sanção aplicável não determine a suspensão da atividade por período superior a um mês”.
Ora, face a este último procedimento, teremos de aguardar a respetiva tramitação, enquadramento e desenvolvimentos posteriores da CII, pelo que os famosos “processos sumaríssimos” que tanta celeuma causaram continuam a ter sustentação regulamentar.
Contudo, quanto ao primeiro procedimento, não se compreende de todo a opção do CD da FPF pelo processo de averiguações, quando todas as denúncias feitas por ambos os clubes, sem qualquer exceção, identificam quer os comportamentos dos eventuais infratores, bem como quem os praticou. Deste modo, salvo melhor entendimento, apenas está em causa a pretensa responsabilização dos atos denunciados, bem como, eventualmente, os meios de prova utilizados para esse fim.
Como se sabe, dispõe o artigo 238.º 1. do Regulamento Disciplinar da FPF que o processo de averiguações só pode ser utilizado para efeitos de apuramento de existência das circunstâncias e da autoria de infração disciplinar, devendo a Direção da FPF, nesta situação, nomear um instrutor enquanto inquiridor. Sendo certo que, se no decurso do processo de averiguações forem apurados factos que indiciem a prática de infração disciplinar, este assume de imediato a natureza de processo disciplinar, a tramitar sob a forma comum, com o aproveitamento de todos os atos praticados, competindo ao responsável do processo deduzir a acusação.
Ora se não está em causa o apuramento das circunstâncias ou da autoria das infrações, pois estas já foram identificadas pelos denunciantes, parece-nos evidente que o poder de exercício da ação disciplinar pelo CD, que constitui um poder de carácter público da FPF, está a ser utilizado indevidamente, com intuito desnecessariamente dilatório e sem conexão com a realidade dos factos.
Com esta insólita situação, para além do futebol, descredibiliza-se totalmente a Justiça Desportiva em Portugal.
*Docente de Direito do Desporto na Universidade Lusíada de Lisboa e advogado na MGRA Soc. Advogados