Acaba de lançar OssO, um diálogo entre um interrogador e um terrorista. Foi duro de roer?
Foi duro de aparar. Na prosa há tendência para encher chouriços mas quis um livro seco. Estive tentado, mas o editor não foi na conversa, a entregar como brinde, junto com o livro, um saco com expressões que ficaram de fora: entrementes, naquela manhã, ele disse, retorquiu, inquiriu, tossicou. O livro tem uma introdução em forma de poema e uma conclusão em forma de anedota mas o essencial é o diálogo entre os dois. E juntei alguns folclorismos: não se pode tirar o prazer da leitura.
Quem são estes homens?
Há um interrogador, que não digo que é americano mas o nOssO modelo é que o seja, e um interrogado, que à partida é do mundo árabe. Vejo o interrogador como um palhaço rico e o interrogado como um palhaço pobre, um desconversador. Depois de o livro sair vi a fotografia de um terrorista que foi libertado ao fim de 12 anos, com grandes bochechas e sorriso largo. Imagino este terrorista assim. Mas o idealista aqui é o interrogador.
Este é um alegado terrorista…
Em nome de uma utopia da segurança temos uma série de gente a fazer mal ao mundo. O meu terrorista é só acusado de ser terrorista. Gosto de quando diz: já não tenho idade para ser terrorista, nem o cinto consigo prender. Não há muitos bombistas suicidas com mais de 30 anos, nessa idade já se faz contas à vida. Na minha cabeça, o interrogador tem o cabelo aloirado cortado à escovinha, é um tipo sério. O outro, que vemos como o inimigo, aos poucos vai ficando humano. Em O Halo Casto digo: um terrorista que parece terrorista não é um bom terrorista. São pessoas com família, simpáticas. Uns são monstros, outros foram levados pelas circunstâncias a fazer monstruosidades. Não é improvável que tenhamos um tio que gosta de contar anedotas a pôr uma bomba.
Poderá algum dos que têm levado a cabo estes massacres ser um bonacheirão?
Hitler era vegetariano, gostava de animais e, segundo consta, de uma boa piada. As pessoas que cometem crimes hediondos não são monstros, são humanos. Só os venceremos se percebermos que são humanos, mesmo que os seus atos lhes outorguem o crachá de monstros. Desumanizá-los é jogar o jogo deles.
OssO surge pouco antes de o EI fazer vários ataques. Foi uma antevisão?
Infelizmente não. Isto agora é cíclico.
Mas um ataque desta escala foi surpreendente.
Chocante, sim. Surpreendente não tanto. Tal como os atentados em escolas nos Estados Unidos. Ninguém quer que haja um próximo, mas… Este ano tem sido pródigo em horrores do EI, do Boko Haram. Os atentados na Tunísia, matando turistas e estrangulando a economia. E, na Palestina e em Israel, houve este ano um refinamento da crueldade, atingindo graus quase inauditos, mesmo para a religião. Os adoradores do ódio estão, este ano, avançados no campeonato.
Hoje escreveria o mesmo livro?
Hoje-hoje não. Amanhã talvez. Estamos em carne viva, uns mais que outros. Mas rir é preciso. Rir do que nos mete medo é necessário. Rir do que nos custa a compreender ainda mais necessário. Para ver se saímos deste poço da morte em que, qual baratas tontas, parecemos ter caído – e em risco de cair. Hoje mesmo cai-nos em cima (junto com o governo de esquerda) uma coisa gravíssima: um avião russo na Síria foi abatido pela Turquia. Ora a Turquia, mesmo com o senhor Erdogan, pertence à NATO. Quase parece encomendado, bolas.
OssO encerra a tetralogia sobre a crise iniciada em 2008 com O Destino Turístico. Está definitivamente encerrada?
As pragas do Egito duraram sete anos, quem parte um espelho tem sete anos de azar, quem faz um brinde sem olhar nos olhos tem sete anos sem sexo. Pensei: vou voltar a ter sexo, deixar de ter azar e vamos sair da crise. Mas a crise veio para ficar, é a cenoura que faz o burro andar. Por isso não prometo não voltar ao tema. Mas estou farto da crise, estou farto do medo, estou farto de Portugal ser destino turístico. Sinto-me como o Al Pacino no Padrinho: ‘Just when I thought I was out, they pulled me back in’. Foram quatro livros em que tentei dialogar com a crise: política, económica, de valores e agora o terrorismo.
É aqui que dá largas ao humor.
Na Instalação do Medo fiz a minha comédia negra. Aqui tento encontrar um tom cómico, quase circense, para uma realidade que não o é. É a realidade que mais nos assombra. O medo do terrorismo, a sensação de insegurança. A qualquer passo que dês há uma bomba que explode e podes tu ou os teus ir em pedaços. Depois, vem a necessidade de contra-atacar. Sabia-se que não foi o Iraque a derrubar as torres mas era preciso um alvo parado, é difícil acertar em terroristas, um país é mais fácil. Depois vem a velha dicotomia entre liberdade e segurança, e a segurança ganhou. O séc. XX teve a liberdade e a felicidade como aspirações, o séc. XXI começa com a liberdade e a felicidade a serem postas de lado pela segurança. Depois retiram os direitos sociais. A acusação de terrorismo começa a ser fácil. E estamos bem até que nos acontece a nós.
A crise une os livros, escritos em tons bem diferentes.
Tento sempre mudar a aproximação, não me repetir muito. N’O Destino Turístico metade do livro era um capítulo e o narrador não é de confiança. N’A Instalação do Medo o anti-herói do livro é a crise económica com a sua linguagem do horror. A Metametamorfose são vários contos, um deles uma versão da Metamorfose, do Kafka, à portuguesa: ele quer transformar-se em barata e não consegue. Nem consegue desumanizar-se. É uma das marcas do horror cómico que estamos a viver. Estamos a ficar desumanizados aos bocados. Há uma fotografia de uma criança morta e choramos mas depois dá o Benfica. Há a questão dos refugiados mas vem o drama do Mourinho. Nem nos desumanizamos à séria.
Já disse estar a tentar captar o ar do tempo. Como está?
Nauseabundo. Remar contra a corrente é ineficaz, vou para onde ela me leva. E nado muito bem neste tempo de chumbo. A ficção tem por dever sintetizar, iluminar. Não explica tudo mas ajuda a dar sentido.
Refere um formulário onde se pergunte sobre intenções terroristas. Foi o ponto de partida?
O formulário não é completamente louco. Obrigarem-me a mentir facilita a vida do guarda fronteiriço porque uma mentira tem sinais: as pupilas dilatam-se, a pessoa coça o nariz. Do ponto de vista legal já não se pode dizer ‘ninguém me perguntou se já tinha feito tráfico de carne branca’. É ridículo? É. Mas num país dominado por advogados como os EUA – tem mais advogados que população, há 340 milhões de americanos e 656 milhões de advogados – faz um certo sentido. Foi o espoletador. Nesse sentido, este livro é muito parecido com um conto que fiz há 20 anos, ‘Consumo Próprio’: um cidadão moçambicano é detido na fronteira pela polícia por suspeita de tráfico de órgãos. E de facto, após uma revista, viu-se que trazia escondidos no corpo dois pulmões, dois rins, um esófago, um fígado. E de nada serviram os protestos do detido de que os órgãos se destinavam a consumo próprio. Esta história tem tudo: humor cruel, é política, humana, do nOssO tempo. Escrevi-a em dois minutos. Nunca mais voltei a escrever uma história assim. O meu problema com o próximo livro é encontrar isso. Estou no desemprego.
Os livros não dependem de si?
Há coisas que não podem vir de ti. Senão sai apenas uma coisa competente. Gostaria – presunção e água benta – que algumas das anedotas deste livro estivessem daqui a uns anos a viajar por aí sem se saber a origem. Modéstia à parte – não é a minha melhor virtude – já provei que volta e meia sou capaz de uns achados. N’O Destino Turístico mostrei um enforcamento na Feira da Ladra e toda a gente ‘a agarrar o momento’ – a expressão da Nokia – a filmá-lo. Agora os malucos do Estado Islâmico andam a fazer enforcamentos e decapitações e a filmá-los com o telemóvel. Mas será uma boa ideia por um processo por plágio aos tipos do EI?
Porquê fazer novelas como OssO e A Instalação do Medo quando se valorizam os livros longos?
É um paradoxo: é quando as pessoas têm menos tempo para ler livros que querem muitas páginas – que são boas para as obras-primas absolutas e os livros de aeroporto. Um livro grande tem uma ambição: obrigar-te a mergulhar naquele mundo durante vários dias. Mas acho a novela a medida certa para uma ficção, permite um controlo de qualidade tendo dimensão para dizer coisas. Não podes dar um soco de 300 páginas. Nada contra os livros grandes, já li e escrevi alguns, mas normalmente é só um balão soprado.
Não sente pressão?
O meu lugar no espaço contemporâneo é tão lateral que não vale a pena competir. Se um dia escrever um livro de 500 páginas espero que seja porque preciso. Li agora o Purity, do Franzen, gostei mas senti vontade de pôr ali uma tesoura. Cada vez que introduz uma personagem faz 20 páginas a contar a história dos pais, dos avós… É encher chouriços. De forma notável, mas é encher chouriços. Exige de mim uma atenção que eu lhe reconheço o direito de exigir. É uma arrogância bonita, apreciável, mas que me irrita: escolhe só as partes boas, sacrifica.
Não lhe dói esse sacrifício?
Deixo sempre muita coisa de fora, há livros que não publico. Tenho um problema de homem de meia-idade: o medo de não ser capaz de voltar a fazer a magia e o aumento da auto exigência. É terrível. Tenho amigos de 60 anos sozinhos. Aponto-lhes alguém e dizem: não tenho paciência para a aturar. É quando se tornam mais insuportáveis que ficam mais exigentes. Cada vez digo mais: esta história não está à minha altura. Mas também digo: será que ainda estou à altura das histórias que escrevi?
Diz que este é o seu primeiro livro realmente divertido. Qual é o lugar do humor na sua escrita?
Fiz livros com humor mas não divertidos. Este é o primeiro que tem mesmo momentos para rir, embora deixe um amargo de boca, como tudo o que faço. Vejo o humor como um desvio, uma forma indireta de nos apropriarmos da realidade. Permite-me, quando estou desequilibrado, reencontrar um equilíbrio ou cair com graça. Num livro não tenho interlocutor. Deixo de ter vontade de fazer graças porque estou sozinho em casa, não estou em conflito. Não me lembro de fazer personagens cómicas, ser inserido na categoria da sátira é uma preguiça de catalogação. Mas pus-me a jeito. Perguntam-me: como vais? Respondo: maravilha. Depois dizem: o Rui está sempre bem-disposto. Não estou. Mas não partilho as minhas desgraças com o mundo. Sempre achei os meus textos mais amargos do que outra coisa mas fui sendo empurrado para este espaço. Começo agora a gostar dele, a aceitar que se calhar sou uma pessoa com uma visão cómica do mundo. Ou que disfarça a visão amarga com algo cómico.
Acaba com uma anedota que é um soco no estômago. Porquê?
Gosto da piada que não vem com uma máquina de gargalhadas atrás. OssO tem a ver com o ser capaz de escutar o outro. O humor não é tanto o fazer rir mas ver que as coisas podem ter outro lado. Amos Oz dizia que se tivesse uma injeção de humor curava o mundo porque os fanáticos não têm humor. Há crispação quando as pessoas acham que têm 100% de razão. O humor é um instrumento de inteligência. É grátis, está acessível a todos e pode salvar vidas. Permite pôr em causa a realidade que se tem pela frente. É mais fácil definir o que não é o humor. A ausência de humor tira a memória, tira a ternura, tira a capacidade de ver o ponto de vista do outro. Torna-nos estúpidos, tiranos, aproxima-nos do fanatismo. O humor é uma coisa que todos temos mas podemos perder. Alguns de nós avariamos. Há algo que algumas pessoas perdem, a ponto de se tornarem monstros. O que têm em comum um nazi e um assassino em série? Os dois perderam a empatia.
Diz que ‘tempos desesperados pedem desesperos engraçados’. Que tempos estamos a viver?
Não sei se o nOssO tempo é pior que os outros. É o tempo em que estamos vivos e a perceção de turbulência agora é maior. Para os cristãos iraquianos a vida está pior que há 15 anos. Há quatro anos havia esperança para os sírios, agora não. Mas todos os dias nascem bebés. Para uma mulher ocidental estes tempos são melhores do que os 30 séculos anteriores. Ser gay e ocidental é melhor do que há 20 anos. Mas estamos sintonizados a todo o momento com o mundo, e a receber sempre más notícias. Se não nos blindarmos um pouco, insensibilizarmos um pedaço, não conseguimos almoçar. Agora estou sempre preocupado com os meus filhos, comigo e com os amigos. Este ano começou com os atentados no Charlie Hebdo, os tipos do Charlie eram meus familiares, cresci a lê-los. Depois veio o Luaty, um jovem pacifista em greve de fome. Uma explosão que matou 60 pessoas numa discoteca em Bucareste, que me atingiu porque tenho amigos romenos. A turbulência política na Grécia, a turbulência em Portugal. O dizerem que o encurtar das possibilidades veio para ficar: sacrifica-te, filho, vá, não sejas piegas, olha que é para o teu bem. O terrorismo, as imagens de horror do EI. O aparente monumental triunfo da estupidez humana. Tudo isto nos suga energia.
É demais?
É como naqueles filmes de terror: vem um gancho e prende-te o braço, vem outro e prende-te o outro braço, uma perna, a outra perna. E começam a puxar-te e estás presa por grampos e vem uma tarântula, caminhando calmamente e tu estás ali exposta. A única forma de não explodires perante todos estes estímulos é fechares-te e tornares-te pouco solidária, mesquinha e uma pessoa que nunca imaginaste vires a ser: alguém que perdeu a alegria. Os nOssOs tempos são maus? Não faço ideia. São tempos em que o futuro parece mais sombrio que radioso. É uma mudança, antes havia esperança no futuro. Podemos continuar a ser humanos sem perspetiva de futuro? Sem otimismo? Sem o desejo de que todos os humanos sejam felizes?