Beatriz da Conceição, fadista mítica a quem se pode aplicar o verso de um fado celebrizado por Carlos do Carmo que ela também cantou, de Júlio de Sousa (1906-66), “vim para o fado e fiquei”, antiga costureira do Porto, foi intérprete de canções tão populares como Ovelha Negra (letra de João Dias), Meu Corpo (Ary dos Santos) ou Porque é que Adeus me Disseste (Pedro Homem de Mello). Especialistas em música salientam a beleza natural do seu timbre e uma interpretação muito pessoal das canções, ainda beneficiada pelo reportório. O musicólogo e historiador do fado Rui Vieira Nery qualifica-a como “uma das três ou quatro figuras mais importantes da história do fado do último meio século”. Prémio Amália Rodrigues de Carreira 2008, morreu no dia 26, aos 76 anos, de doença prolongada.
Com 19 anos, costureira de profissão (que se absorvia na rádio da época, ou cantarolava a trabalhar), Beatriz da Conceição veio a Lisboa assistir a uma sessão de fados. Viajou com uma amiga, para irem ao Solar da Alegria, que a fadista Márcia Condessa possuía então na Praça da Alegria. Diria depois, numa entrevista, achar que a Márcia “era uma condessa de verdade”. Sendo o Solar um espaço de boémia e tertúlia, Beatriz experimentou cantar. Foi um sucesso completo, e a mudança total de vida. Já não voltou para o Porto, a costurar.
Entusiasticamente louvada por Márcia e Lucília do Carmo, seria logo convidada para integrar o elenco do Solar. E correria depois as mais destacadas casas de fado, até ao Senhor Vinho.
Beatriz tinha grande fascínio pelos grandes fadistas da época: Lucília do Carmo, Argentina Santos, Fernanda Maria, Alfredo Marceneiro, Carlos Ramos, Tony de Matos, Max, Manuel de Almeida e Tristão da Silva. Estreou-se com enorme sucesso na Revista em 1963, aos 24 anos, no Teatro Monumental, na peça Férias em Lisboa. E gravaria o primeiro disco em 1965, um EP intitulado Fui por Alfama.
O jornal A Voz de Portugal proclamara-a ‘divina’, em 1968. E não só tinha efetivamente o porte de diva, como parecia assumir essa pose. Bonita, atraente, com o sotaque e o palavrão vernáculo do Porto mais popular na ponta da língua – mas de ar altivo e convencido. Havia quem a achasse vaidosa: de cabelos sempre arranjados, vestida a rigor, altiva. Alguns chamavam-lhe teimosa, e ela parecia gostar de alardear um certo mau feitio. Concordava perfeitamente com esta definição, feita na contracapa do 1º disco: “Jovem, turbulenta e irreverente, como uma rajada de ar fresco no meio fadista nacional”. Ary dos Santos e Fernando Tordo criaram-lhe o Fado da Bia, (seu petit nom íntimo).
Em 1968, depois de atuar nas colónias africanas, teve a sua primeira internacionalização, inaugurando a casa de fados Lisboa Antiga, em S. Paulo, no Brasil. Somaram-se, nos anos seguintes, várias atuações no estrangeiro. Participou em muitos espetáculos de Revista e em programas da RTP até aos anos 90.
Beatriz da Conceição Mendes Lage nasceu num ambiente modesto, mas bem no centro do Porto. O pai era caixeiro viajante de sapatos. A mãe operária fabril. Ficou órfã da mãe muito nova (morreria com 29 anos), acabando a ser criada primeiro por uns vizinhos, depois por uma tia, tudo gente pobre onde tinha de trabalhar muito.
Ainda tirou a 4.ª classe, apesar de expulsa de duas escolas, por comportamento turbulento. O pai tentou recuperá-la aos 17 anos, mas já ela tinha um namorado 11 anos mais velho, de quem teria uma filha aos 18. Lá casaram, e ele até era rico, com umas mercearias na terra (razão que deu para deixá-la e à filha para trás). Sempre parece ter tido dedo torto para arranjar homens, todos mulherengos, todos por ela assim abandonados em ciumeiras bravias.
Quando começou, era ela uma figura da chamada ‘nova geração’. Agora há outras, que se mostram suas admiradoras, quase todas presentes no velório. Ana Moura levou-a duas vezes ao Coliseu (em 2008 e 2013), a espetáculos seus.
O maestro belga Paul van Nevel, fundador do Huelgas Ensemble, que gravou Les Larmes de Lisbonne/Tears of Lisbon com Beatriz da Conceição, em 1996, realçou “a força contida” da fadista. A convite dele, Beatriz atuaria depois em vários festivais internacionais.
Em 2007, no festival londrino Atlantic Waves, no Queen Elizabeth Hall, numa noite intitulada The Grand Divas Of Fado, reuniram-se vozes de diversas gerações, com ela a cantar ao lado de Maria da Fé, Mafalda Arnauth, Aldina Duarte ou Raquel Tavares.
Em 2012, seria a figura central do documentário O Fado da Bia, realizado por Diogo Varela Silva, com intervenções de Camané, Carminho, Carlos do Carmo, Aldina Duarte, Jorge Fernando, Ana Moura, Hélder Moutinho e Raquel Tavares.