Credibilidade das ‘secretas’ foi prejudicada

Os serviços de informações estão debaixo de fogo desde que o ‘ex-espião’ Silva Carvalho, no seu julgamento, revelou uma série de ilegalidades. Especialistas dividem-se quanto aos efeitos na credibilidade da ‘secreta’ nacional. O primeiro-ministro ainda não reagiu.

Nas últimas semanas, o país soube mais sobre o funcionamento dos serviços secretos do que durante as últimas décadas. O ex-diretor do Serviço de Informações Estratégicas e de Defesa (SIED) revelou, no julgamento do chamado ‘caso secretas’, que grande parte dos procedimentos internos são ilegais e que o segredo de estado serve apenas para camuflar as irregularidades. Deixou claro que há – ou pelo menos houve – infiltrados em empresas como a Ongoing e a PT e que os serviços detêm órgãos de comunicação social.

As declarações ainda não mereceram comentários oficiais, mas segundo o antigo ministro da Administração Interna Figueiredo Lopes têm de ser analisadas ao pormenor: «Este tipo de revelações é sempre nocivo ao bom funcionamento dos serviços e à credibilidade e confiança que têm no plano internacional», disse ao SOL.

Igualmente contactado pelo SOL, o primeiro ministro, António Costa, que tem a tutela do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP), não fez qualquer comentário. Por seu turno, o secretário geral do SIRP, Júlio Pereira, disse apenas que enquanto durar o julgamento «não pretende fazer comentários sobre estes assuntos».

Figueiredo Lopes considera, no entanto, que deveria ser dada uma explicação à opinião pública, pois «uma coisa é andar no limite da lei para conseguir o bom funcionamento dos serviços e outra é a possibilidade de existir um funcionamento assente em atos ilegais».

Mas Filipe Pathé Duarte, professor universitário no Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna, considera que o que deve ser analisado com este caso são as limitações que a lei impõe aos serviços portugueses e que considera excessivas.

Além dos problemas de credibilidade internos, Figueiredo Lopes lembra que, com as atuais ameaças externas, os serviços secretos dos países têm de cooperar ativamente. E considera que «tal cooperação é tanto maior quanto mais confiança houver entre os respetivos serviços».

‘Secretas’ são ilegais ou desenrascadas?

Para Pathé Duarte esse não é, no entanto, um problema. O também porta-voz do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT) explica ao SOL que as limitações legais das ‘secretas’ portuguesas serão «certamente do conhecimento dos serviços estrangeiros» e confia, por isso, que todas estas revelações serão compreendidas à luz dessa realidade.

«Há um constrangimento legal ao funcionamento efetivo dos serviços de informações no cumprimento dos seus fins. O que se deve aproveitar para discutir é a necessidade de desenvolver e incentivar uma cultura de intelligence, não só entre a comunidade dos decisores políticos, mas também na sociedade civil – cultura que não existe atualmente», defende Pathé Duarte.

O especialista refere ainda que «é preciso compreender que algumas das ações agora referidas como ilegais serão feitas para salvaguardar determinadas ameaças» – ou seja, na sua opinião, «poderão ser ilegais mas não necessariamente ilegítimas».

‘Fuga para a frente’

Frisando as diversas restrições legais e políticas, Pathé Duarte destaca ainda que o_facto de não ser permitido aos serviços de informações fazer escutas telefónicas é muito constrangedor:_«Estes meios não poderão deixar de ser usados se se estiver perante uma ameaça,  que se sabe à partida que pode ser mitigada com recurso a escutas».

Se para Figueiredo Lopes todas estas revelações deveriam levar a um esclarecimento oficial da opinião pública, Pathé Duarte desvaloriza-as, considerando que o que foi relatado pelo antigo diretor da ‘secreta’ externa são formas de contornar obstáculos: «É um plano de fuga, ainda que ilegal, para uma boa execução da prática de intelligence».

Na sua opinião, muitas das práticas que têm sido noticiadas «não põem em causa os princípios fundamentais de um Estado de Direito».

Sobre a necessidade de haver um controlo sobre os serviços para que não possam ser feitas investigações de forma arbitrária –  como o Ministério Público_(MP) acredita ter acontecido no caso em que Silva Carvalho é o principal arguido – o porta-voz da OSCOT sugere a criação de um colégio de juízes que fiscalize a necessidade de determinadas ações.

Esta ideia não é nova. A possibilidade de o SIS (’secreta’ interna) e o SIED (externa) terem acesso a metadados foi chumbada pelo Tribunal Constitucional em agosto. O novo regime jurídico – que já tinha sido aprovado no Parlamento  – previa a existência de uma comissão de fiscalização composta por juízes conselheiros.

O que já foi revelado

Na última sessão do julgamento, há uma semana, Jorge Silva Carvalho revelou perante o coletivo presidido pela juíza Rosa Brandão que os serviços secretos tiveram um ‘espião’ nos quadros da Ongoing. O ex-diretor do SIED pretendia esclarecer o motivo pelo qual passou informações sigilosas a um quadro daquele grupo empresarial sobre dois cidadãos russos – uma das acusações que lhe são feitas pelo MP. Silva Carvalho terá ainda garantido que Fernando Paulo Santos, o ‘espião’, recebia dos serviços para estar naquela empresa.

Os dois estrangeiros investigados estavam em conversações com o grupo de Nuno Vasconcellos para aquisição de um porto na Grécia. O MP considera que a transmissão de documentos sigilosos a um quadro da Ongoing constituiu uma violação do segredo de Estado e um crime de corrupção, defendendo que – em paralelo com a passagem de informação privilegiada – Silva Carvalho estaria já a tratar da sua passagem para a empresa liderada por Nuno Vasconcellos.

Mas a existência de um espião na Ongoing é apenas um detalhe no meio de tudo o que já foi dito perante o tribunal. Têm sido feitas muitas outras revelações por Silva Carvalho sobre o funcionamento operacional das ‘secretas’. Uma delas aconteceu há algumas semanas, quando afirmou que «90% do modus operandi das ‘secretas’ é ilegal». E deu exemplos: são vigiadas, fotografadas e filmadas pessoas que não estão sequer sob investigação. Adiantou também que o segredo de Estado só tem servido para abafar estas situações.

Segundo o antigo responsável do Serviço de Informações Estratégicas e de Defesa, existem casos de manipulação de jornalistas e outros em que países estrangeiros ‘compraram’ jornalistas, sendo tudo do seu conhecimento.

Mas uma das informações que mais surpresa causou foi o facto de as ‘secretas’ portuguesas serem proprietárias de órgãos de comunicação social, ainda que durante o julgamento não tenham sido detalhados os nomes dos referidos meios.

Silva Carvalho diz que se viu ‘empurrado’

À saída de uma das últimas sessões, Silva Carvalho disse aos jornalistas que «preferia não ter sido colocado nessas circunstâncias» (fazer revelações sobre o funcionamento das ‘secretas’). E garantiu ter tido um cuidado acrescido para não expor em demasia os serviços: «Tentei responder com verdade ao Tribunal, sem comprometer o que considero serem os limites últimos. Mas em todo este processo empurraram-me e conduziram-me para esta situação».

Mas não poderá Silva Carvalho ser julgado por estar a violar segredos de funcionamento dos serviços? «O entendimento do Tribunal foi o de que eu podia prestar declarações porque, de alguma forma, estas matérias seriam desclassificadas», respondeu o ex-diretor do SIED, alertando para o facto de não ter concordado: «Não concordei, mas segui o conselho do Tribunal».

O que é o caso ‘secretas’

Este processo tem como arguidos Jorge Silva Carvalho, o presidente da Ongoing, Nuno Vasconcellos, dois agentes do SIED e uma antiga funcionária da Optimus. Em causa estão os crimes de acesso ilegítimo a dados pessoais, abuso de poder, violação do segredo de Estado e corrupção ativa e passiva para ato ilícito.

O Ministério Público sustenta que Nuno Vasconcellos contratou Silva Carvalho para os quadros da empresa para conseguir informações secretas.

Além disso, segundo a acusação, a arguida Gisela Teixeira, ex-funcionária da Optimus, entrou indevidamente nos dados de comunicações do jornalista Nuno Simas, em 2010. O jornalista tinha noticiado a existência de uma tensão interna no SIED.

carlos.santos@sol.pt